“Crimes do Futuro” trata de performance enquanto rejeita o ontem e o amanhã
David Cronenberg brinca com expectativas em filme que explora caminho torturado do artista em mundo de transformações constantes
“Crimes do Futuro” em tese existe numa intersecção dentro da carreira de seu diretor, David Cronenberg. De um lado há o inevitável paradigma do retorno do autor a um cinema de extroversão, visceral por assim dizer, retomando a metodologia de filmes como “Videodrome”, “eXistenZ” e mesmo “A Mosca” onde o gore e o dito “profano” sintetizam aos olhos do público os temas tratados pela narrativa. Do outro, a produção continua uma tendência “artística” do cineasta que se manifesta pelo menos desde “Marcas da Violência”, priorizando seu tato conhecido para dentro de dinâmicas de interiorização que atendem uma lógica mais subjetiva — adequada, portanto, aos interesses mais “profundos” dos festivais onde seus trabalhos ganham agora mais atenção, incluindo o próprio exemplar da vez.
Essa divisão tem seu viés de interesse por denotar com precisão a transição mais notável da carreira do diretor nas últimas décadas, mas reflete pouco a organicidade com que se dá esse processo e — mais importante — a evolução de seu estilo. Por mais que Cronenberg tenha mesmo debandado de uma produção mais comercial, essa mudança de ares não influencia tanto sua obsessão pelas possibilidades do corpo, e em certo nível sua opção por levar o consequente jogo de deformações para lógicas internas é muito mais uma progressão dessa lógica que um efeito.
É uma distinção sutil, mas que faz toda a diferença quando se volta os olhos a um filme como “Crimes do Futuro” porque se evita assim uma confusão simples. É claro que a produção desperta isso naturalmente ao se utilizar de um título idêntico a um dos primeiros trabalhos do cineasta mas, apesar dos órgãos na mesa e do reuso de uma história de transformações, seu raciocínio é muito mais de prosseguimento com o que Cronenberg vem tocando nos últimos anos. E se o filme trata da natureza da performance, faz sentido que isso também se insira em uma performance.
Escrevo tudo isso porque essa natureza de falso cognato é central a muito dos efeitos da produção, que toma a encenação como tema a ser observado. Cronenberg aqui se aproveita de tempos tão movidos pela autoconsciência — seja nas artes, seja em como nos relacionamos — para reivindicar um espaço próprio a seu cinema, mas na prática o exercício é menos de olhar para si do que para o lugar que se habita. Há ecos disso por toda a trama envolvendo Saul (Viggo Mortensen) e Caprice (Léa Seydoux), dois artistas que vivem de injetar hormônios e remover órgãos cancerígenos tatuados do primeiro, tornando a cirurgia em uma grande apresentação teatral até o momento em que descobrem um grupo de pessoas decidido a revelar ao mundo a “próxima fase evolutiva” da humanidade com um garoto capaz de digerir plástico.
Fica muito fácil nessa hora retomar os discursos de “Videodrome”, “eXistenZ”, “Gêmeos: Mórbida Semelhança” e “Crash” porque em algum nível esses filmes se relacionam com “Crimes do Futuro” na ideia de evolução dos corpos pela ótica da deformação externa (do plástico, do metal, da cirurgia, o que for), mas há alguns entraves elementares de operação nesse caminho. A começar pelo próprio distanciamento imposto por Cronenberg neste novo trabalho, que ao contrário dos outros entende a narrativa por uma análise mais sóbria. Se nos anteriores havia uma percepção de progresso maior, aqui rodeia-se Saul com uma decrepitude que ao mesmo tempo impede uma percepção otimista de futuro e afasta a história do apocalíptico.
Além disso, há a própria performance que pede um olhar à parte, começando pela sensação imediata de falso e, bem, performático em todos os movimentos. O filme não à toa a certa altura faz a distinção entre “Cirurgia é o novo sexo” e “Cirurgia é sexo”: entende-se a transformação como um prolongamento e renovação dos “velhos métodos” porque também se busca um comentário sobre esse movimento, que por sua vez reflete nosso estado de eterna transformação. O body horror é quase detalhe na narrativa, um capricho que por acaso é central aos movimentos porque se liga ao procedimento geral de seu realizador.
Nesse sentido, “Crimes do Futuro” não está tão distante assim de “Mapa Para as Estrelas” e “Cosmópolis”, filmes que também mantinham uma perspectiva distante de acontecimentos maiores para entender a lógica interna no meio. Como Saul, Cronenberg parece estar em busca de uma verdade que mantenha seu trabalho em movimento em um estado das coisas cada vez mais inverossímil a seus olhos, e desenha-se com isso um limite entre natural e artificial que é tão tangível quanto as cirurgias artísticas. A jovem funcionária do governo admiradora do protagonista denota essas duas frentes, aliás: Kristen Stewart vive a personagem para dentro no intuito de contrapor a expansividade esperada dos artistas Saul e Caprice, mais abertos a experimentar com o corpo que uma personagem confortável com a experiência do consumo.
A narrativa então segue pela lógica da investigação das partes por Saul, seja pela história maior da conspiração dos humanos evoluídos ou pela esfera de relações desenvolvida com Caprice, mas no viés de um post mortem metafórico e literal — um oferecimento da performance maior em torno do defunto centro das atenções. Há quem enxergue esse jogo como frio demais para funcionar, mas gosto de pensar que Cronenberg com isso abraça tanto o absurdo do construto — voltado ao circuito de arte que espera significado de seus trabalhos — como aquilo que lhe é mais íntimo e crucial. A ótica da transformação é uma dor maior na produção, afinal, e nada como deixar Mortensen diversas vezes torturado numa cadeira que o alimenta a contragosto para brincar com essa ideia.
E se “Crimes do Futuro” é um filme performático sobre o lugar da performance e do artista que rejeita a revisão do passado e uma evolução imediata de futuro, faz algum sentido que este termine reproduzindo a imagem máxima de Joana D’Arc com seu principal ator, logo após uma descoberta que em tese o faz “progredir” na escala evolutiva. Nada como recorrer a Dreyer para refletir a tortura do fazer artístico quando crucificado por todos os lados, imagino.