Exercício de terror, “O Telefone Preto” orbita entre sobrenatural e suspense de confinamento com dignidade

Pedro Strazza de Azevedo
4 min readJul 22, 2022

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Retorno de Scott Derrickson ao gênero é marcado por maior vocação ao drama e abordagem mais distanciada de subgêneros

Mesclar subgêneros para inverter expectativas é uma operação já há muito consumada no mainstream do cinema norte-americano, mas não deixa de ser interessante quando um filme refaz tal percurso de maneira tão aberta com seu público. É o caso de “O Telefone Preto”, que marca o retorno de Scott Derrickson ao horror de baixo orçamento após um período visivelmente traumático na Marvel e pela adaptação de um conto do filho de Stephen King, Joe Hill, oscilando entre tipos bem diferentes do gênero: o terror sobrenatural e o de sequestro.

É um exercício promissor e que ganha uma camada extra na ambientação setentista, bem no momento de explosão de casos criminais relacionados a assassinos em série nos Estados Unidos. Estamos em um cenário crescente de paranoia e medo, e essa situação alimenta a trama do conto, sobre um jovem (Mason Thames) que acaba refém de um sequestrador (Ethan Hawke) em um quarto onde o tal telefone preto do título o bota em contato com as vítimas anteriores.

Tudo em termos de história é elementar como se espera (o material original fez parte da primeira publicação de Hill, uma antologia de quinze contos) e permite a Derrickson que se concentre nessa intersecção dos fantasmas com os esforços de resgate do protagonista. Até há temas que buscam conectar tudo, mas o filme existe mesmo em função do que é prático ao suspense.

Há algo de muito interessante nesse caminho. “O Telefone Preto” seria o típico projeto de início de carreira para um diretor no atual momento de Hollywood se não servisse de retorno de um veterano a um campo familiar após a passagem pela máquina, uma constatação que tira a produção dos conformes da indústria — os quais ela habita com muito conforto. O filme está longe de ser uma anomalia, mas a experiência de Derrickson com algo mais desambicioso o destaca em um panorama onde faltam obras do tipo nos círculos mais massificados, confinadas a um fim que não foge da composição de portfólio.

Isso faz toda a diferença aqui porque Derrickson preza muito pelos arredores da dinâmica do garoto vivido por Thames e o sequestrador de Hawke. Em uma duração de cem minutos, surpreende que a primeira meia hora do filme é dedicada inteira ao estabelecimento do protagonista e de seu cotidiano, com acenos muito pontuais à forma como os casos de desaparecimento influem na comunidade de Denver. Apesar da estética de película gasta, há pouco de nostalgia e muito das pequenas opressões diárias, quase como se o diretor entendesse no bullying que cerca o personagem a base para o surgimento da figura psicopata que aterroriza a cidade.

Essa dedicação alimenta boa parte do jogo que se cria entre Thames e Hawke a partir do sequestro, mas não da forma que Derrickson e o co-roteirista C. Robert Cargill esperam. A relação dúbia da simbologia de abuso e bullying a partir do vilão se enfraquece com o próprio caráter vago do assassino, havendo muita pouca curiosidade pelo personagem para fazê-lo algo mais além das máscaras que utiliza — a revelação familiar na reta final chega tarde para cumprir com isso, por exemplo. A forma como as assombrações ajudam o garoto, porém, torna a narrativa num pequeno quebra-cabeça de interesse, e os bons momentos de drama ganham algum respiro nesse momento mesmo que de forma atravessada.

Isso porque ganha-se muito com personagem no processo, o que parece ser mesmo o intuito da direção para fortalecer uma narrativa que no mais depende muito do elenco juvenil para fazer valer os paupérrimos temas de luto e abuso que povoam a história. Além de Thames e dos garotos com quem fala no quarto, Madeleine McGraw é um bálsamo como a irmã do protagonista, ocupando uma subtrama que dá respiro e até um caldo maior ao suspense de “O Telefone Preto” quando a narrativa tende pro redundante.

Isso inclui o desfecho, fragilizado por não ter o que oferecer além da completude desses arcos sem lá grande significado. Soa como um pedágio entregue de forma consciente: Derrickson se interessa pelo material o suficiente para mantê-lo vital, mas sua abordagem permanece distanciada o suficiente para reforçar o caráter de experimento da narrativa. É um passatempo sem medo de se assumir como tal, portanto.

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Pedro Strazza de Azevedo

Jornalista, repórter da Ilustrada e autor do Aventuras no Cinema. Ex-editor-chefe do B9, já colaborou para Omelete, Tangerina, Sesc e o podcast Cinemático.