Triunfo do cinismo, “Jurassic World: Domínio” comprova a cruel impessoalidade das sequências de legado

Pedro Strazza de Azevedo
7 min readJun 1, 2022

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Desfecho da franquia é o ponto mais baixo do blockbuster hollywoodiano nos últimos anos

Uma das “constantes” mais interessantes de se presenciar em Hollywood é da crença de que o momento atual é o jeito certo de se fazer negócios até que ele deixa de sê-lo. É verdade que o cinema vive de ciclos e em indústrias de produção fordista essa noção se acelera, mas no caso do cinema norte-americano essa metodologia beira à lógica do culto e, para ser mais preciso, da fidelidade aos rumos da manada independente da situação em que se encontra.

Tentando ser mais prático, a melhor forma de detectar esse raciocínio coletivo dos industriais hollywoodianos é olhar os caminhos das franquias mais longevas nos últimos anos. Nas séries de terror como “Halloween”, “O Massacre da Serra Elétrica”, “Sexta-Feira 13” e “A Hora do Pesadelo”, por exemplo, é possível ir além do ideal básico de repetição para sucesso e entender como os filmes se confundem entre si em algumas épocas específicas, presos ao que só pode ser descrito como visões muito determinadas de mercado que entendem aquele momento como imaterial. São os remakes dos anos 2000 com peso marcado nos novos jovens, as guinadas espíritas e a degringolada para continuações conscientes do absurdo no fim dos anos 80 ou até mesmo a recente incursão nos temas sociais após o sucesso de “Corra!” nos anos 10 — tudo sempre de olho no que “está dando certo”, no copia e cola de crença única no discurso.

Essa metodologia vale para quase todos os ramos de produção, mas especialmente naqueles onde o investimento maior pede um maior controle industrial pela “garantia” do retorno — e talvez seja aí que a lógica do culto se fortaleça, pois num meio tão imprevisível como o cinema talvez seja mesmo preciso um pouco de sandice para se navegar. Nestes círculos, parece ser de conhecimento geral que o grande messias do momento seja a cultura da nostalgia, um sentimento que age como bastião aos estúdios dispostos a salvar suas receitas bancando gastos cada vez mais extraordinários no retorno de grandes franquias do passado.

A questão é de novo o tempo, porém, e sobretudo no ato de esticar esses ciclos até onde é possível. Hollywood vem apostando de forma recorrente nos revivals desde que viu nos sucessos megalomaníacos de “Jurassic World” e “O Despertar da Força” a oportunidade de tornar o “legacionismo” numa fonte de arrecadação contínua, mas a cada lançamento bem sucedido também cristalizou essa prática como uma seita inquestionável na relação de reaproveitamento do público. Nos dias de hoje tudo se reaproveita e ressuscita, mas não são muitos nos estúdios que parecem perceber o caráter finito dessa equação, em especial quando para entender até que ponto o espectador se engaja com um ciclo cada vez mais automatizado.

Esse automatismo de demanda e entrega por si só é outro grande mal industrial que de tempos em tempos assola o cinema de massa, sobretudo por ser inevitável que essa linha de montagem uma hora ou outra caia no comando de pessoas que cumpram com sua crueldade no desinteresse do reconhecimento de seus mecanismos. “Jurassic World: Domínio” é o mais novo exemplar dessa cadeia, algo curioso se considerar que o filme de Colin Trevorrow encerra não apenas um ciclo na franquia (a trilogia “Jurassic World”), mas de um mercado do qual ajudou a fundar e abrir as portas.

É uma poesia que se manifesta de forma solitária no mar de desgraça que envolve o filme e todos os seus caminhos, preocupados exclusivamente no trabalho de unir a história que se desenvolve desde o “primeiro” capítulo em 2015 com o status atual da cultura de nostalgia e sua principal rima de “devolver” elencos originais ao tempo presente. No caso de “Domínio”, esse trabalho se dá de forma protocolar, com o trio formado por Alan Grant (Sam Neill), Ellie Sattler (Laura Dern) e Ian Malcolm (Jeff Goldblum, de volta após uma ponta em “Reino Ameaçado”) retornando numa posição similar ao de peças de museu em turnê, intocáveis e em constante exibição. Isolados em boa parte da narrativa por uma trama de investigação, os personagens são tratados por todos ao redor como ídolos perdidos a serem admirados, arriscando-se tornar nos dinossauros pacíficos do primeiro “Jurassic Park”.

Esse tratamento — o qual soa em muitos momentos como uma versão “testada e aprovada” pelo estúdio na esteira de outras tantas franquias que seguiram o mesmo caminho — é apenas parte da lógica assumida de produto que parece existir unicamente dentro da produção comandada por Trevorrow, de volta à direção de forma muito consciente do trabalho de repetição em mãos. O roteiro que ele e Emily Carmichael assinam volta a trabalhar com a ideia cansada do primeiro “Jurassic World” em refazer “Jurassic Park” com altas doses de racionalismo, mesmo que na prática isso signifique retroceder das consequências do capítulo anterior e concentrar os dinossauros “soltos” num novo “parque” — agora uma reserva ambiental com intuitos capitalistas de um novo milionário ambicioso (Campbell Scott).

A sensação geral de preguiça se imprime da locução cansada que contextualiza o público no começo até a missão de resgate parental que ocupa os protagonistas Owen (Chris Pratt) e Claire (Bryce Dallas Howard), mas a fadiga surge de fato no cinismo com o qual se executa tudo. Apesar de muito vendido como o “fim da era jurássica”, “Domínio” pode ser muito cruel no teor rotineiro com o qual assume todas as suas partes, sobretudo por assumir que a franquia no fim é uma grande sequência intercalada de ação e suspense pulverizada por dinossauros.

Não que o primeiro “Jurassic World” fosse muito diferente — o desprezo humano válido ao público ajudou a lhe render um espaço inusitado de síntese do que há de pior nessa onda atual de remakes disfarçados de sequências — mas do primeiro a este último capítulo se percebe que o que antes era visto como proposta agora se consumou como fórmula impessoal.

Sob esse ângulo faz algum sentido que a grande ameaça da vez sejam gafanhotos “jurássicos” e que uma das personagens mais importantes seja um clone, em jogadas autoconscientes que revelam o desprezo do filme por seu público e até sobre si mesmo. É nos ritos que a produção afunda de vez no desprezível, entretanto, até porque eles detalham a profundidade dessa artificialidade vista como estética. Mesmo com a cena dos turistas no primeiro “Jurassic World” na bagagem, nunca se enquadrou um braquiossauro com tamanho desinteresse e melancolia, despido de significado perante a descentralização dos dinossauros na história, e de maneira inacreditável se repete esse procedimento na “disputa” por supremacia na cadeia alimentar no clímax.

Tudo é tratado como apetrecho e obrigação por Trevorrow, num exercício de deslocamento de olhar que trava até o andamento da ação, a ver pela correria desenfreada em Malta que mal se entende o que acontece e por quê acontece. No fim, a produção não está tão distante da posição do vilão milionário da vez, especificamente na cena em que salva do escritório destruído a velha lata spray onde o personagem de Wayne Knight buscava contrabandear os DNAs de dinossauro no primeiro “Jurassic Park”.

Aí entra de novo o tratamento dos personagens “antigos” e como existe uma inabilidade real em aproveitá-los para além do faturamento mais garantido. Nesse espaço, a constatação da produção com seu próprio lugar registra tudo pela ótica do constrangimento: ver Alan e Ellie “reatarem” e Ian se revoltar contra a ordem do corporativo são prestações de contas que não dizem respeito aos personagens (pensar as duas sequências de “Jurassic Park” deixa tudo muito cômico, aliás), mas ao que é entendido pelos responsáveis como “fã” e como se deve atender seus “desejos”. Que o filme caia na brincadeira redundante de espelhos quando os núcleos se encontram é parte dessa lógica, do teor adocicado que reduz o espectador a um imbecil em busca de carinho — ainda mais em cenas que destacam a camaradagem de Ellie e Claire como “girl power” ou em como se cerca o elenco de atores negros para vender uma ideia de diversidade na série.

Talvez a ironia máxima de “Domínio” seja que no fim o que se deixa de “legado” é a constatação da impessoalidade vigente nesse resgate massivo e industrial de Hollywood dentro de sua própria história. Sete anos depois da intensificação desses trabalhos, enfim temos em mãos uma obra que esquematiza a artificialidade da lógica de entrega que parece ter sufocado de vez o espetáculo das produções maiores, num momento em que se flerta de vez com a onipresença cultural. O desfecho em si parece alinhado com isso, ao reconhecer uma harmonia global que a narrativa vai diretamente contra durante duas horas excruciantes: vamos aprender a conviver mesmo que nossa condição é de continuar repetindo os mesmos erros de novo e de novo.

É um epitáfio triste para um filme triste, como todo bom epitáfio almeja ser, mas também maligno por essência e uma síntese de todas as decisões tomadas em um ciclo de filmes domado pela procura desesperada do atendimento, não importando as consequências. Vence o cinismo, perde a gente.

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Pedro Strazza de Azevedo

Jornalista, repórter da Ilustrada e autor do Aventuras no Cinema. Ex-editor-chefe do B9, já colaborou para Omelete, Tangerina, Sesc e o podcast Cinemático.