Melhores do Ano: 2021

Pedro Strazza de Azevedo
34 min readDec 30, 2021

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Os 50 maiores, 25 destaques e 15 bombas que marcaram os últimos doze meses

Que ano, capitão.

Durante o difícil processo que é escrever uma introdução pra essas listas de fim de ano, me peguei lendo com certo fascínio a que fiz pra edição de 2020. Não exatamente pelo conteúdo em si (até porque o sentimento de exaustão emocional é mais ou menos condizente com tudo que rolava naquele momento), mas porque na comparação com agora me fica tangível uma sensação que pressinto há algumas semanas, de que 2021 foi um prosseguimento de 2020 até meados de outubro e só conseguiu ser um ano em si neste último trimestre - um sanduíche que como todos nós sabemos não é muito gostoso de experimentar.

Não é uma questão para lá de crucial aos caminhos do cinema, claro (digo, ainda são doze meses), mas me ajuda a explicar o porquê de eu chegar a essa reta final de dezembro num misto de esgotamento com anseio por mais. Tanto a lista de 2021 quanto a de 2020 saíram praticamente no mesmo momento - o Medium avisa que a do ano passado saiu dia 29 de dezembro - mas se há doze meses eu não aguentava mais ver filme, desta vez eu tive dificuldade pra determinar um prazo final. E isso mesmo naquele pique de cansaço que sempre define o fim destes ciclos.

Enfim, começar uma publicação dessas à base de divagação não parece a melhor das estratégias, então acho que vale pular pro que interessa de vez - até teria uma ideia de síntese emocional pra leva de produções de 2021, mas acho que a cada ano que passa fico mais consciente de que esses papos são mais fumaça e não interessam a ninguém.

2021 foi produtivo pra minha vida de cinéfilo. O Letterboxd me informa que passei pela primeira vez a marca de 600 filmes vistos no ano (“arranje um hobby”, já ouço amigos brincando) e, deste volume, em torno de 227 foram produções lançadas entre 2019 e 2021. Tire uns 20 por contar como curta ou minissérie e cacetada, ainda é muita coisa pra mim, que nos anos “tradicionais” sempre orbitou na faixa dos 150.

Tudo isso pra dizer que essa maior “dedicação” obviamente ia me levar a ampliar o que já é uma publicação grande demais pras minhas ambições. Ao invés dos tradicionais 25, minha lista de melhores do ano desta vez conta com 50 títulos porcamente ordenados, de forma a pelo menos contemplar o que me chamou a atenção neste ano. Claro que nem tudo ali é perfeito e maravilhoso, mas depois de quase dez anos fazendo esse rolê passei a entender que a melhor parte dessas listas é rememorar o que de fato impactou a rotina - cinema é uma experiência subjetiva, afinal.

Dito isso, como no ano passado os critérios seguem simples:

Critérios:

  1. Para estar no ranking basta apenas ser um filme produzido ou lançado entre 2019 e 2021 que vi no curso dos últimos doze meses;
  2. São 50 filmes destacados na seção de Melhores, outros 25 no Destaques e mais 15 no Piores.

Além de ampliar a janela de “elegibilidade” em mais um ano (copiando estratégia dos amigos, claro), uma novidade pra esse ano é que além da lista também bolei uma playlist. Pra ajudar quem quer que esteja lendo isso a ir até o fim? Claro (e obrigado!), mas também porque uma das coisas que mais faço é descobrir músicas nos filmes que assisto e queria prestar algum tipo de tributo a essa rotina - além de ser ótimo para revisitar em uns anos, o que de certa forma tem a ver com parte da graça de montar essas listas de fim de ano. Não que seja o auge da qualidade artística no campo musical, veja bem, e nesse ponto já peço desculpas aos amigos fãs de música que por ventura ferirem os ouvidos enquanto escutam isso.

Por fim, algumas anotações pessoais perdidas sobre a lista antes de começar a scrollagem:

  • Grande ano para Cannes, pois nada menos que 14 filmes da edição deste ano do festival estão incluídos no top 50 - desses, 10 são da seleção oficial. Bom ano pra Berlim também, com sete produções exibidas no evento listadas abaixo;
  • Apenas 8 filmes listados são dirigidos por mulheres, o que é uma pena mas já tá melhor que os últimos três anos, ainda mais se considerar que quatro estão no top 25 - foram 5 em 2020, apenas Atlantique em 2019 e 6 em 2018;
  • Foi um bom ano pra se aventurar fora dos Estados Unidos também, dado que só 8 produções norte-americanas aparecem no top 25. Apesar de outras 15 aparecerem no resto da lista, sem dúvida um recorde pessoal (se é que dá pra chamar assim?);
  • A lista tem quatro estágios: os três primeiros são os favoritos, do quarto ao décimo primeiro colocado são todos ótimos filmes, entre o 12° e o 37° os listados são produções muito boas e daí até o 50° lugar estão os bons filmes que achei injusto relegar ao Destaques - até porque como gosto de dizer, cinema é um rolê muito subjetivo e os filmes precisam sobretudo de tempo para crescer e amadurecer em nós;
  • O top 3 na real é um grande empate técnico, aliás, mas como não dá pra encerrar a lista de uma forma anticlimática, ordenei do único jeito porco possível: impacto, puro e simples. Todos são candidatos sérios a obras primas, porém.

Bem, bora pros trabalhos.

Hors-Concours: Lovers Rock, de Steve McQueen

Eu tentei de uns 3 ou 4 jeitos diferentes, mas não consegui me convencer a incluir o filme-que-na-verdade-é-um-episódio-sqn do McQueen na lista desse ano. Apesar de toda a força individual, sua lógica ainda está inscrita nos rumos de Small Axe e essa simultaneidade de operação compromete demais sua permanência numa conversa sobre cinema.

Ao mesmo tempo, é praticamente impossível para mim contornar o impacto de uma produção como essa, mesmo chegando um ano atrasado na discussão em relação a listas de fim de ano, então estamos aqui. Lovers Rock é fascinante de cabo a rabo: se todos os outros filmes da antologia se baseiam no registro objetivo das tensões que se acumulam na comunidade imigrante do Reino Unido, entre lutar por sua permanência no país e manter parte de sua identidade intacta aos ataques e avanços conservadores, sua abordagem é traduzir o mesmo tema nos limites do corpo, e nada como uma festa para extravasar essas subjetividades. Prato cheio a McQueen, que enfim concilia num mesmo espaço de cena as vocações de seu cinema com o interesse político e educativo do projeto, mas mesmo no contexto de sua carreira estes 70 minutos representam um auge de seu artesanato. As cenas de Silly Games e Kunta Kinte Dub são hipnóticas, capazes de esvaziar o ar no corpo em poucos segundos, e isso sozinho já faz por merecer o Hors-concours.

Tá no Globoplay, aliás. Fica também o aceno a Mangrove e Missa da Meia-Noite, outras produções que por um momento foram consideradas para cá, mas foram travadas exatamente por serem TV mesmo quando autorais.

Piores do Ano

  1. Malcolm e Marie, de Sam Levinson
  2. Free Guy: Assumindo o Controle, de Shawn Levy
  3. Space Jam: Um Novo Legado, de Malcolm D. Lee
  4. Cherry - Inocência Perdida, de Anthony Russo e Joe Russo
  5. Estados Unidos vs. Billie Holliday, de Lee Daniels
  6. A Menina que Matou os Pais / O Menino que Matou Meus Pais, de Mauricio Eça
  7. Observadores, de Michael Mohan
  8. Apresentando os Ricardos, de Aaron Sorkin
  9. Nitram, de Justin Kurzel
  10. O Tigre Branco, de Ramin Bahrani
  11. Reação em Cadeia, de Marcio Garcia
  12. O Esquadrão Suicida, de James Gunn
  13. Belfast, de Kenneth Branagh
  14. Justiça em Família, de Brian Andrew Mendoza
  15. Grande Tubarão Branco, de Martin Wilson

É a coisa mais engraçada: a cada ano que passa concordo mais com as argumentações de que listas de piores filmes do ano são um desserviço, mas também não paro de fazer e em 2021 ainda por cima consegui expandir de 10 para 15 o ranqueamento. Talvez porque me vi refém de mais besteira esse ano, mas confesso que ampliei o segmento pra dar conta não só dos produtos mal resolvidos, mas dos pretensos “registros artísticos” que no fim são só um grande balão de ar quente em chamas pra baixo.

No mais, um comentário rápido sobre o pódio “de baixo”. Hollywood este ano aprofundou as relações de enlouquecimento inerentes a se tornar consciente da máquina ao redor (se foi pelo esquema fordista do streaming ou pela maximização da busca eterna por máximo retorno com gastos obscenos, aí é uma discussão à parte), mas, nessas condições, entre se assumir como lixo de grande orçamento e buscar ativamente ser um, eu sofro particularmente mais com o último. Pior que isso, só querendo pagar de autor revolucionário sem qualquer gabarito pra validar isso além de filmar com limitações.

Destaques do Ano

25 filmes que foram considerados e poderiam estar na lista final, ou simplesmente filmes que chamaram minha atenção. Este ano optei por não criar um ranqueamento além do top 50, até porque a partir daí a discussão se esvazia e eu tenho dificuldade sincera de estabelecer qualquer ordenamento que faça sentido nesse estágio - nesse caso os extremos já são suficiente, se é que isso conta como piada política infeliz.

Pra quem tiver curiosidade, vou marcando do lado o que tem Cinemático e crítica escrita.

  • 007: Sem Tempo Para Morrer, de Cary Fukunaga (crítica // Cinemático)
  • Amor, Sublime Amor, de Steven Spielberg (crítica // Cinemático)
  • Aqueles que Me Desejam a Morte, de Taylor Sheridan (Cinemático)
  • A Assistente, de Kitty Green
  • Atividade Paranormal 7, de William Eubank
  • Billie Eilish: The World’s a Little Blurry, de R.J. Cutler
  • A Chiara, de Jonas Carpignano
  • Cuidado Com Quem Chama, de Rob Savage (Cinemático)
  • Desgrávida, de Rachel Lee Goldenberg
  • Diários de Otsoga, de Maureen Fazendeiro e Miguel Gomes
  • Em Um Bairro de Nova York, de Jon M. Chu (Cinemático)
  • Fúria Incontrolável, de Derrick Borte
  • Godzilla vs. Kong, de Adam Wingard (Cinemático)
  • Halloween Kills: O Terror Continua, de David Gordon Green (crítica // Cinemático)
  • Infiltrado, de Guy Ritchie (Cinemático)
  • Kate, de Cedric Nicolas-Troyan (Cinemático)
  • Madalena, de Madiano Marcheti
  • Murina, de Antoneta Alamat Kusijanović
  • Quanto Vale?, de Sara Colangelo (crítica // Cinemático)
  • Sem Remorso, de Stefano Sollima (Cinemático)
  • Shiva Baby, de Emma Seligman
  • O Último Duelo, de Ridley Scott (Cinemático)
  • Uma Noite em Miami…, de Regina King (Cinemático)
  • Venom: Tempo de Carnificina, de Andy Serkis (crítica // Cinemático)
  • A Vingança é Minha, Todos os Outros Pagam em Dinheiro, de Edwin

Mas vamos ao que interessa.

50. Old Henry, de Potsy Ponciroli

Com tanto faroeste de prestígio sendo produzido em Hollywood, é de se imaginar que passe um ou outro exemplar do gênero que não exatamente trabalha na chave mais prestigiada, mas carrega força nos atos. Acho que esse é o caso do Old Henry, que chegou a ser exibido fora da competição em Veneza mas está longe de qualquer pompa, sobretudo por ser um filme muito comedido e centrado nas relações de pai e filho que se desenham - o que é muito coerente pro faroeste, convenhamos. Ponciroli é muito competente na hora de fazer o filme B aqui e toda a situação crescente de cerco é bem boa, mas a produção não existe sem o trabalho de Tim Blake Nelson, que faz seu misterioso personagem com um balanço brilhante entre a aura que o atormenta e as necessidades imediatas da educação de seu filho. Um filme sobre paternidade enquanto uma responsabilidade presa a situações limite.

49. Medusa, de Anita Rocha da Silveira

Já faz seis anos que Anita Rocha da Silveira botou na rua o seu Mate-Me Por Favor e, apesar das dificuldades para encontrar financiamento pro próximo projeto, é muito bacana ver que a diretora segue refinando seu cinema em torno dos temas e provocações inscritos naquele filme. Medusa me soa como um meio do caminho nessa lógica, muito porque a direção sofre para criar uma coesão de longa-metragem em torno do que soa como uma série de esquetes, mas é inegável seus prazeres na hora de lidar com as opressões misóginas do Brasil atual, ainda mais nessa perspectiva de pequenas agressões que se somam - as cenas envolvendo a amiga influencer de maquiagem são fascinantes, nesse sentido. E que bom ver alguém trafegar com segurança entre o humor e o horror sobre o tema, coroados em um clímax apoteótico.

48. PVT Chat, de Ben Hozie // 47. Zola, de Janicza Bravo

2021 foi um ano repleto de filmes “sobre a internet”, na falta de um termo adequado e que não soe tiozão, e apesar de suas imperfeições tanto Zola quanto PVT Chat foram muito felizes em como registrar comportamentos e pulsões que nos movem quando imersos nesse ecossistema virtual. O que vale notar é que, apesar dos ângulos serem muito diferentes, ambos os filmes carregam o mesmo interesse de trabalhar essa lógica da atração, uma toxicidade que contamina relações de forma irrecuperável e que naturalmente não deixa de ser muito sedutor em seus meandros.

Zola obviamente chama mais a atenção pela melhor distribuição e o ponto de partida intrigante ao ser adaptado de um fio de Twitter, e ainda que o entusiasmo seja desmedido há valor na direção de Janicza Bravo por emular esse buraco sem fundo que é a linha do tempo eterna, brincando com a sede do espectador por saber o próximo passo da história a partir de elementos do cinema. PVT Chat, enquanto isso, se prende ao registro do íntimo para ir fundo nas relações de voyeurismo do vídeo no online, um jogo de imagens que não se qualifica como enganação, mas cria uma miragem sedutora o suficiente para se basear os rituais da vida em cima. O curioso é que no centro de ambos há elencos muito inspirados, Zola com seus atores e atrizes de apoio, PVT Chat com uma Julia Fox muito atenta à tradução da vida de mão dupla nas relações digitais.

PVT Chat tá na MUBI; Zola tá disponível pra compra e locação digital.

46. O Homem Ideal, de Maria Schrader

Falando em relações, muito feliz a forma com o qual Maria Schrader lida com as urgências do desejo nesse mundo contemporâneo. Tudo partindo da história de uma mulher encarregada de avaliar um androide construído para atender todos os interesses românticos do cliente, mas aqui interessa menos a paixão lentamente formada que a percepção interiorizada da protagonista do que move o jogo de atração e repulsa pelo próximo. Tanto Maren Eggert quanto Dan Stevens estão ótimos no atendimento dessas demandas da narrativa, com O Homem Ideal se fazendo muito bem nos pequenos momentos que se formam durante esse contato.

Tá em exibição nos cinemas.

45. Luca, de Enrico Casarosa

Segue muito interessante o que Pete Docter vem fazendo na Pixar após a demissão de John Lasseter do comando das divisões de animação da Disney. Muito se comentou sobre o puxa e repuxa de Luca em torno dos temas LGBTQIA+ e em como o diretor Enrico Casarosa se embananou pra tratar disso na divulgação, mas o valor do filme em cima desse debate é que ele desperta de forma natural na trama contida e aparentemente despreocupada da produção. Isso é lindo por navegar contra muito do que se tornou recorrente nos filmes do estúdio ao longo dos anos, com o longa se ensaiando como comédia de verão de olho justo nessa perspectiva intimista. Luca é um filme pequeno, sim, mas está longe de ser menor.

Tá no Disney+. Escrevi sobre no trabalho e gravei Cinemático.

44. The Card Counter, de Paul Schrader

Minha pira com o Paul Schrader está mais ligada ao Fé Corrompida, mas daí a dizer que não curti The Card Counter é um exagero. É um estranho caso de filme de pôquer que não se interessa com o pôquer enquanto jogo, mas prisão emocional auto-estabelecida, o que é fascinante por alimentar a meditação dos efeitos da guerra ao terror no imaginário norte-americano e por trair nossas convicções iniciais em torno do protagonista, sobretudo por assumir que ele está no controle de tudo. Grande trabalho do Oscar Isaac acima de tudo, espero rever o filme daqui uns anos para quem saber conectar melhor com tudo que é posto.

43. Petite Maman, de Céline Sciamma

Muitos já disseram mas não custa repetir: bom demais ver a Sciamma estacionando rapidamente os projetos grandes para um filme de escala menor, mas não menos cheio de qualidades. Petite Maman é muito feliz em como traça a narrativa em torno do mãe e filha assombrado pelo espectro da morte, sem nunca se deixar levar pelo peso destes signos e imprimindo uma melancolia que depois há de se traduzir em um sorriso de canto de boca. As duas crianças são muito boas nesse exercício.

42. A Crônica Francesa, de Wes Anderson

Ainda não estou 100% convencido do sucesso da empreitada que Wes Anderson assume aqui como autor consciente da extinção de sua classe, mas A Crônica Francesa já me ganha por tirar o diretor do piloto automático quando na fabricação de seu cinema voltada a eternos processos de amadurecimento - até porque convenhamos, pelo menos desde Darjeeling essa vocação já perdeu o sentido em sua carreira. O diretor aqui refaz o comentário de O Grande Hotel Budapeste com a ampla liberdade oferecida do autor estabelecido e, se no todo a estrutura sente a ausência de um núcleo mais presente, na base de cena os contos são atraentes e bem encadeados na progressão lógica. O humor seco segue maravilhoso, mas o que me chama a atenção é esses momentos de cor em histórias preto e branco, um vislumbre do que realmente está em jogo aos olhos da direção.

Tá em exibição nos cinemas. Escrevi sobre no trabalho.

41. Marx Pode Esperar, de Marco Bellocchio

O bom filho à casa torna. Bellocchio passou tantos anos trabalhando filmes sobre política e família que faz algum sentido que agora ele faça um documentário para acertar as contas com os familiares, mas o que me chama a atenção é que o registro é menos autocongratulatório (alô padre analisando cinema!) que introspectivo pela perspectiva das dores já há muito tempo passadas. Que o diretor diga no começo que essa pode ser a última chance de encontrar e reunir todos os irmãos vivos diz muito do que move o filme.

40. A Garota e a Aranha, de Ramon Zürcher e Silvan Zürcher

Sobre como ocupamos e deformamos espaços.

39. Stillwater - Em Busca da Verdade, de Tom McCarthy

O flerte de Hollywood com o cinema europeu data de décadas e já rendeu todo tipo de produção e importação lamentável, mas de vez em quando rola um exercício no sentido oposto que intriga pela sua perspectiva quase alienígena. Essa é uma frase que define o Stillwater de Tom McCarthy, que carrega na premissa e na atuação muito boa de Matt Damon essa excursão norte-americana pela França de maneira assumida. O jogo é de puro contato e a narrativa expansiva não hesita em passar tempo com aquele personagem e ver como ele reage ao mundo, ainda mais por entender que sua transformação pelos arredores não deriva de turismo mas sim das relações que o cercam. Eis uma conclusão bela a se ter no mundo pós-pandêmico, além de só crescer no longo prazo.

Tá disponível pra compra e locação digital, além de à venda em DVD e Blu-Ray.

38. Zeros e Uns, de Abel Ferrara

É claro que o filme incompreensível do ano seria também o que melhor entende o estado de caos, turbulência e incerteza que foi 2020 e 2021. A fotografia de Sean Price Williams é show a parte, mas Ferrara e Ethan Hawke estão muito antenados em como registrar fisicamente o mundo apocalíptico que vivemos, dentro de uma trama de espionagem sem pé ou cabeça que só se interessa pela dinâmica de corpos ao qual se sujeita o protagonista. A mensagem do ator no fim do filme coroa o ato: não é sobre o que se conta, mas o que se registra.

Tá disponível pra compra e locação digital.

37. Deserto Particular, de Aly Muritiba

Bom ver que lentamente se forma um debate em torno deste que foi o representante brasileiro do Oscar 2021 (um título vazio que aparentemente carrega valor na distribuição), mas apesar das imperfeições admito que gosto do que Muritiba concebe em Deserto Particular. Muito dos abismos que separam as realidades do Brasil atual, com o diretor partindo dessa busca do protagonista pela paixonite para chegar a uma história de amor que não se consuma por completo, mas se valoriza na descoberta do outro - o que pode cair em certo fetichismo pela mistificação da comunidade LGBTQIA+ pelo homem branco enrustido, como alguns vem começando a denotar. Se tudo falha, pelo menos há bons momentos espalhados pela narrativa, a ver pelo desfecho ou o primeiro contato dos amantes.

Tá em exibição nos cinemas.

36. Jungle Cruise, de Jaume Collet-Serra

Não é fácil a vida do fã de Jaume Collet-Serra no momento mas, enquanto a máquina hollywoodiana não gera o quebra-quebra esperado no cinema do diretor e Adão Negro não estreia para sacramentar (ou não) isso, me presto à posição de defensor solitário deste Jungle Cruise que pode não reinventar - ou corrigir - a roda, mas a ajusta a algo que pelo menos lembre o interesse que Gore Verbinski provocou com Piratas do Caribe há alguns anos. Dos “live-actions” da Disney deve ser ao lado de Meu Amigo, O Dragão o trabalho mais interessante fora dos projetos de puro efeito visual do estúdio nos últimos anos, até porque Collet-Serra imprime na fórmula engessada algumas dinâmicas que ele formulou com mais liberdade em todos os seus filmes dos últimos anos. E convenhamos, redirecionar a performance para uma versão bogartiana do ator foi o máximo que alguém conseguiu tirar de Dwayne Johnson nos últimos anos.

Tá no Disney+. Gravei Cinemático.

35. As Bruxas do Oriente, de Julien Faraut

Com o documentário esportivo se prestando cada vez mais à prestação de contas geracional, é um alívio e tanto ver o que Julien Faraut faz no gênero mesmo quando na posição de espectador externo como nesse As Bruxas do Oriente. O filme é todo sobre a análise distanciada da cultura de performance mas funciona como uma faca de dois gumes das mais dolorosas, mostrando as crueldades impressas pelo técnico da histórica seleção de vôlei feminino japonês sem esquecer dos resultados que as moveram. Os sentimentos conflitantes não são resolvidos e com propósito claro de provocar esse dissabor, até porque são questões que continuam a mover o esporte de hoje. É um filme bem mais provocante que o No Império da Perfeição, e apesar dos efeitos não serem os mesmos ele registra algum impacto.

34. Nem Um Passo em Falso, de Steven Soderbergh

Mais um filme de Soderbergh que usa de situações microscópicas para escalonar a cenários macroestruturais dos Estados Unidos, mas ainda que o sentimento de Chinatown mal resolvido prospere aqui Nem Um Passo em Falso é bem feliz no gato e rato acuado que encena com seu vasto elenco. O diretor provavelmente vai pra sempre perseguir o status de autor radical que ganhou nos anos 90, mas é nesses exercícios de gênero paradoxalmente despreocupados e com propósito que se percebe as qualidades maiores de seu cinema.

Tá no HBO Max. Gravei Cinemático.

33. Minari: Em Busca da Felicidade, de Lee Isaac Chung

É duro que o hype do Oscar sempre destrói filmes e faz muita gente revirar os olhos para indicados que parecem dizer o mesmo de sempre, mas mesmo depois do circo interminável deste ano continuo achando que o entusiasmo e o desgosto com Minari foram demais para um projeto que de fato é muito feliz no registro semibiográfico que se propõe. Não é um filme de grandes gestos e ele se perde no fim exatamente por isso (a direção de Lee Isaac Chung cai pra cafonice rápido no desfecho), mas até chegar lá ele é muito sólido para mostrar as dinâmicas da família e como o desejo do pai de Steven Yeun prejudica e alimenta todos. O contraste desse impulso com a atuação da avó de Youn Yuh-jung sacramenta todos os esforços que de fato movem o filme, bem resolvido em suas imperfeições.

Tá na Amazon Prime Video. Gravei Cinemático.

32. O Refúgio, de Sean Durkin

Passou batido demais esse filme novo do Sean Durkin, que lida com o anseio de ascensão social da classe média de maneira muito precisa e através de um elemento inusitado: a geografia dos espaços. O longa é de Jude Law e Carrie Coon, mas também dos vazios imensos da mansão onde a família protagonista se instala para atender os anseios crescentes do patriarca para se tornar um novo rico, um comentário direto ao reaganismo e esse entusiasmo econômico falso que ajudou a deteriorar a sociedade do país. A explosão de Coon na reta final é desses momentos catárticos que dá gosto de assistir, até pelo marasmo de apatia que há de derrotar todos os envolvidos.

Tá na Amazon Prime Video.

31. Amor e Monstros, de Michael Matthews

Com o cinema hollywoodiano de grande orçamento naufragando sob o peso de expectativas absurdas e necessidades imediatistas até demais, filmes como esse Amor e Monstros ganham fôlego extra como uma espécie em extinção no quesito de buscar o entretenimento sem esquecer o peso da ação e seus personagens no processo. Enquanto Shawn Levy entregou seu pior com Free Guy na luta para se manter firme na indústria, o que ele faz junto do diretor Michael Matthews aqui é emular Amblin com algum olho nas sagas infanto-juvenis que habitam o imaginário hoje, mas ao contrário de tudo isso o filme acaba muito ligado à jornada emocional do protagonista e em como ele se relaciona com o mundo pós-apocalíptico em movimento. Não bastando isso, o cachorro entrega sozinho todo o lado emocional da história.

Tá na Netflix. Gravei Cinemático.

30. Dias Melhores, de Derek Tsang

Amor em tempos de policiamento e opressão interna e externa, então é claro que foi indicado ao Oscar de Filme Internacional - e que bom que foi, sobretudo por existir fora do espaço da curiosidade em que foi colocado pela censura.

Tá no Telecine Play (RIP).

29. Monster Hunter, de Paul W.S. Anderson

Seguimos subestimando o talento de Paul W.S. Anderson enquanto diretor, sobretudo nestes projetos em que se deturpa as regras cada vez mais vigentes de “fidelidade” aos jogos e adapta-se os mesmos no interesse de levar à telona o que eles despertam nos jogadores. Que Monster Hunter ainda tenha tempo de tirar um Inferno no Pacífico em cima da relação de contato por meio da ação entre Milla Jovovich e Tony Jaa só demonstra as capacidades do filme em se sobressair dentro do cenário cada vez mais encaixotado, um que ele não deixa de prestar contas da forma mais esquizofrênica no fim só para acrescentar à lógica do caos e da montagem frenética.

Tá no HBO Max, além de à venda em DVD e Blu-Ray.

28. Judas e o Messias Negro, de Shaka King

Outro filme que foi bastante subestimado no Oscar deste ano apesar do hype excessivo validar o raciocínio, Judas e o Messias Negro é desses projetos que pode incomodar pelo registro mais confortável e isento de movimentos de esquerda nos EUA, mas sua qualidade para orquestrar a tragédia em movimento sobrepõe a essas questões. Shaka King não é nenhum Scorsese, mas busca trabalhar na mesma chave para brincar com o puxa e repuxa que aniquila seu protagonista perante a imagem e discursos de Fred Hampton. A trinca formada por LaKeith Stanfield, Daniel Kaluuya e Jesse Plemons dá um gás sinistro à narrativa, e o desmonte emocional que se registra ao longo de duas horas é efusivo nos gestos.

Tá no HBO Max. Gravei Cinemático.

27. Encontros, de Hong Sang-soo

Sobre momentos que não vivemos e amargamos. Não acho que seja meu Hong favorito (longe disso), mas Encontros é muito feliz e condizente em como se relaciona com o corpo de trabalho do diretor, sobretudo no transbordamento de relações mal resolvidas para algo tão intangível como o arrependimento. A cena do almoço com o esporro é desses momentos que resumem o cinema do cineasta.

26. Great Freedom, de Sebastian Meise

Microcosmo de relações dos mais fascinantes este que o estreante Sebastian Meise encena em Great Freedom, que parte de políticas absurdas do estado alemão contra a comunidade LGBTQIA+ para registrar a história de dois homens cuja amizade gradualmente se torna a razão de vida na prisão. Nada aqui é novo mas essa cumplicidade fascina na atração crescente dos protagonistas. E outra atuação sólida de Franz Rogowski, como pode.

25. Madeira e Água, de Jonas Bak

Como reencontrar seu lugar num espaço em eterna transformação, que não mais o reconhece? É uma provocação e tanto que norteia o filme de Jonas Bak, sobretudo pelo contraste da senhora alemã aposentada que viaja para a Hong Kong dos protestos e tensões sociais crescentes. A mistificação envolvida incomoda a princípio, mas funciona porque suaviza o procedimento difícil de tráfego pelos cenários que é central a todas as manobras da narrativa. E o último plano é somente hipnotizante.

24. Sr. Bachmann e Seus Alunos, de Maria Speth

Pedagogia como eterno espaço de negociações. São três horas e trinta e sete minutos que para mim, que já há um tempo vê a profissão de professor de fundamental como um estresse constante, correm muito bem dentro do desafio eterno do senhor Bachmann do título em lidar com os alunos e todas as pressões que os cercam objetiva e subjetivamente, e o filme é exatamente sobre esse acompanhamento. A direção de Speth é feliz demais em não instrumentalizar qualquer momento a favor de uma mensagem mais imediata, pois a montagem dos encontros por si só já dá conta de revelar muito do que transcorre e pressiona os professores para fazer o melhor pelos alunos. A crítica a um modelo puramente funcionalista de determinação de futuro se faz sentir e sem precisar nunca recorrer a qualquer grande alegoria, pois o sistema por si só expõe a crueldade combatida pelos educadores.

23. The Worst Person in the World, de Joachim Trier

Não lembro mais quem disse que o Trier fez a melhor adaptação de Sally Rooney sem se basear num livro dela, mas a definição faz todo sentido e olha que eu só vi a minissérie do Normal People. Sem dúvida bate num lugar diferente pra minha geração e assumo isso como elogio maior ao filme, apesar das trucagens o grande trunfo é a atuação de Renate Reinsve e como ela traduz com muita naturalidade essa noção millennial de priorização dos impulsos do corpo sobre todo o resto - nesse sentido o prólogo funciona bem para estabelecer a narrativa em torno do tema. Apesar do título e dos rumos da história Trier também não faz um grande julgamento dos acontecimentos, o que é coerente com esse pique de deciframento pois no fim habitar a tragédia agridoce me parece definidor do jovem contemporâneo.

22. O Discípulo, de Chaitanya Tamhane

Sobre se fechar em signos do passado. Muito bem pensado do Chaitanya Tamhane de ensaiar este filme como tragédia mas puxar o tapete na reta final, o filme é um grande aquário mas é descobrir onde estão as paredes que fazem a narrativa funcionar em seus propósitos. Importante notar que toda a lógica de preservação aqui não é desvalidada mas se reconfigura como uma prisão emocional instrumentalizada, e nesse sentido O Discípulo cresce muito no registro.

Tá na Netflix.

21. Duas Tias Loucas de Férias, de Josh Greenbaum

Uma pena que essa comédia tenha sido sublimada pela pandemia tanto aqui (onde saiu sem alarde e direto na locação e compra digital) quanto no país de origem (logo no começo do ano, no meio da zona do Oscar), pois seus trunfos são imensos na relação com o gênero e dão uma contornada massa em todo o marasmo da comédia norte-americana dos últimos anos. Duas Tias Loucas de Férias deve ser dos filmes mais dementes em termos de humor mas ele nunca se assume como entretenimento burro, a sequência de esquetes é bem orquestrada por Greenbaum e o elenco mantém o comprometimento que Wiig e Mumolo tem com os papéis. Fora isso, grandes números musicais e convenhamos, dos dois filmes de 2021 que contam com Jamie Dornan cantando, este é com certeza o exemplar superior.

Tá no HBO Max.

20. Tempo, de M. Night Shyamalan

Shyamalan segue um diretor muito subestimado pelo perfil de filmes que realiza e a reputação adquirida no começo da carreira, mas agora vejo com mais fascínio a sua opção deliberada pro assumir o filme B como acontece com este Tempo - e falo filme B não pela convenção ultrapassada de “menor”, mas mesmo de um teatro às claras que não esconde suas vocações. Para além dos temas difíceis e o desfecho cafona de intenções, é uma sensação mágica assistir como o longa se baseia inteiro nos travellings e nos planos detalhes de seus personagens envelhecendo, um procedimento muito escancarado que sobrepõe-se ao andar da história para focar exatamente nas reações em curso. Nesse sentido, além de Shyamalan e Michael Gioulakis é preciso destacar de novo o trabalho de Gael García Bernal e Vicky Krieps, claramente duas grandes atuações que passaram batidas mesmo entre os defensores do cineasta. E veja bem, nem é meu favorito do diretor.

Tá disponível para compra e locação digital, além de à venda em DVD e Blu-Ray. Gravei Cinemático.

19. The Velvet Underground, de Todd Haynes

Da posição de alguém que não é fã do Velvet Underground, só quero dizer: há muitos documentários musicais que fazem muito bem o trabalho de registrar o talento dos retratados e este filme não deixa de ser um deles, mas poucos trabalham tão bem a noção do esgotamento artístico e da efemeridade dos movimentos como Haynes faz aqui.

Tá no Apple TV+.

18. Maligno, de James Wan

Bateu 200 referências no liquidificador e bebeu tudo com um energético. Em tempos onde o acúmulo de imagens se faz notar até mesmo em Hollywood, acho que é no mínimo coerente que o Maligno de James Wan se assuma como filme de horror maior do mainstream porque seu procedimento é inteiro baseado na overdose, e nesse ponto acho que quero dizer que tenho grande prazer do curto-circuito provocado pelo longa e em como ele ainda arranja tempo pra tirar uma reviravolta absurda da cartola que se encaixa perfeitamente no seu jogo de cartas cuspidas, sem nunca também deixar que o espectador assuma o controle do mesmo.

Tá no HBO Max. Gravei Cinemático.

17. Azor, de Andreas Fontana

Se é pra fazer piada de metalinguagem, digamos que este seja a versão corrupta do Madeira e Água. Trabalho primoroso do Fontana e também faz todo o sentido do mundo que o Mariano Llinás co-escreva o roteiro com o diretor, até porque Azor é inteiro feito dessa navegação a la Coração das Trevas do colarinho branco e só alguém que fez La Flor poderia ajudar a estruturar isso de forma satisfatória. Dos bons filmes sobre corrupção e hierarquia do poder, mas também em como assimilar ambientes e se localizar dentro deles. Vivendo com os gorilas? Se tornando um gorila? Enfim.

Tá em exibição nos cinemas.

16. Benedetta, de Paul Verhoeven

Tenho a impressão de Benedetta é o filme que menos curto do Verhoeven, até porque como muitos comentam essa ideia de deixar o holandês preso no circuito de arte soa um tanto improdutiva para alguém do seu porte. Ainda assim, nem tem como contestar os méritos do filme porque seu humor é cáustico e sua estruturação é precisa para revelar o teatralismo religioso envolvido e brincar com a corrupção de corpos em movimento. Vai sem precisar ser dito, mas Virginie Efira manda muito aqui.

15. A Mulher de um Espião, de Kiyoshi Kurosawa

Kurosawa já fez alguns vários dramas na carreira (e inclusive um deles é meu filme favorito dele, Sonata de Tóquio), mas é interessante que só agora ele tenha feito sua versão de um filme do Mizoguchi. A Mulher de um Espião não é um filme fácil, concordo, sobretudo porque a fotografia digital estourada pode servir de empecilho a muitos, mas como tudo no cinema do diretor há um propósito nessas manobras mais drásticas e aqui isso só acentua o jogo de enganação dupla que acomete a protagonista, uma sensação de alienamento e recusa que é tecida junto do espectador - não à toa brinca-se tanto com cinema na história, uma arte de enganações. Vários bons momentos aqui, coroados com um final de partir o coração. Pior que amor não correspondido é o amor que insistimos que existe.

14. Compartment N° 6, de Juho Kuosmanen

Dinâmicas de atração. Depois de um filme fechado nas questões do corpo (O Dia Mais Feliz de Olli Maki é uma comédia romântica, sim, mas partia primeiro da luta pela perda de peso do protagonista), faz algum sentido que Kuosmanen faça outro filme de premissa claustrofóbica centrado numa relação, mas além dos atores o que me chama a atenção em Compartment N° 6 é o quanto se tira daquele espaço limitado, a câmera praticamente cria um universo inteiro para os protagonistas irem e virem nas tensões e amizade. É um filme de trem e portanto meio óbvio que a narrativa enfraqueça um pouco toda vez que abandone esse local (o que acontece aos montes aqui), mas nesse caso acredito que a direção consiga manter a bola rolando ao usar os espaços amplos apenas como extensão do que acontece naquele vagão. E ainda tem tudo que envolve as tentativas de registro e a evidência da efemeridade daquela parceria, elementos que só engrandecem o filme.

13. Bergman Island, de Mia Hansen-Løve

The. Winner. Takes. It. All.

Ok, sendo menos fumaça: acho doido que a Hansen-Løve tenha mesmo usado o Bergman de fundo de cena nessa premissa, partindo mesmo dessa relação de atração pela dor que se tem com arte para chegar num filme essencialmente assombrado por relações. Gosto muito da metalinguagem aqui, aliás, sobretudo porque Vicky Krieps (de novo ela) e Mia Wasikowska estão muito bem e a diretora sabe como parear as histórias para chegar aos golpes emocionais.

E claro, “fuck Bergman”.

12. France, de Bruno Dumont

Voltando ao “faz sentido”, é lógico que Dumont fez um filme sobre criação de imagem após dois centrados no mito de Joana d’Arc. Imagino que a atuação do ano pertença a Léa Seydoux e não é por menos, France é inteiro construído em torno dela e essa crise entre a produtora de imagens e se tornar uma imagem é pano o suficiente para a atriz exercer todas as facetas do seu ofício. Dumont ainda encontrou tempo para fazer o acidente de carro mais absurdo de 2021, um feito se considerar basicamente tudo que rola em Hollywood nos últimos tempos.

11. No Caminho da Cura, de Robert Greene

Cinema terapia quase nunca me envolve além do efeito imediato, então imagine minha surpresa ao assistir esse novo filme do Robert Greene, que lima qualquer possibilidade de instrumentalização do processo de seis homens abusados por padres na infância e permite que os “objetos” assumam o comando da narrativa para lidar com os respectivos traumas. De novo repetindo o que muitos comentaram já, mas provavelmente o melhor testemunho sobre o efeito nefasto dos crimes institucionais da Igreja Católica.

Tá na Netflix.

10. Wolfwalkers, de Ross Stewart e Tomm Moore

Cheguei atrasado, mas impossível contornar algo como esse Wolfwalkers da Cartoon Saloon. Além da animação ser algo por si só, com esses efeitos de falsa perspectiva e certa rusticidade para retratar o conto folclórico em movimento, toda a narrativa construída por Stewart e Moore dá conta da grande tragédia que se ameaça concretizar nas beiradas sem nunca evoluir o filme a uma epopeia, uma jogada difícil e que rende muito em termos de impacto emocional - a reta final é de engasgar umas 3 ou 4 vezes. Histórias de pai e filha elevadas à máxima potência em termos de drama.

Tá no Apple TV+.

9. Ahed’s Knee, de Nadav Lapid

Eu sigo achando inevitável que o Lapid pire de vez e vire uma espécie de Kanye West dos festivais, mas por enquanto nem dá pra reclamar quando se tem algo tão forte e incisivo quanto Sinônimos e este Ahed’s Knee sendo gerados. Que o diretor assuma a frente de toda a crise que ele tinha ensaiado com muita precisão há dois anos obviamente torna esse projeto divisivo por natureza, mas esse foi dos poucos filmes de 2021 que me deixou colado na cadeira do cinema e justo por esse desmonte emocional que se traduz também na forma. Um filme de ira, mas de lamento, sendo muito consciente em ambas as frentes e em como pareá-las sem buscar resolução.

8. Matrix Resurrections, de Lana Wachowski

A máquina corrompe, mas não quer dizer que possa ser usada a seu favor. Eu acho que cansei de ouvir a discussão de todo mundo sobre se é mérito ou problema toda a metalinguagem do primeiro ato e vou concentrar as atenções aqui em como Lana Wachowski aproveitou uma continuação puramente comercial da criação que impulsionou sua carreira com a irmã para resgatar os significados que lhe interessavam em 1999 e reformulá-los para todo o contexto do começo dos anos 20. Que isso converse direto com Sense8 (outra produção subestimada por muitos) só torna Matrix Resurrections mais encorpado em seus efeitos, uma história de amor que não se trata de salvar o mundo da própria autodestruição, mas literalmente de romper com o conformismo e criar o mundo à sua própria maneira. Ler tudo isso como fan service é só criminoso, mas dado o que foi feito com o primeiro Matrix eu acho que vai ser natural - e tudo bem.

Tá em exibição nos cinemas. Gravei Cinemático.

7. Ataque dos Cães, de Jane Campion

Eu de verdade não sei o que escrever sobre Ataque dos Cães nesta lista, dado que ele provavelmente vai circular por pelo menos mais três meses nas discussões graças à temporada de premiações. Se vale de algo, meu primeiro contato com o cinema da Campion se deu este ano e chegou num momento fortuito, dado que esse novo trabalho conversa diretamente com o que ela fez em O Piano ainda que trafegue caminhos próprios, brincando com as noções de masculinidade do faroeste nas leis do desejo que caracterizam o estilo da diretora. Deve ser a melhor atuação da carreira de Benedict Cumberbatch, ainda mais ancorada pelo bom elenco de apoio à disposição. Filme de um enigma em constante movimento.

Tá na Netflix. Escrevi sobre no trabalho e gravei Cinemático.

6. Cry Macho: O Caminho Para Redenção, de Clint Eastwood

Os últimos filmes do Clint são marcados por um grande peso dramático e a demolição e questionamento constante de mitologias, então me soa como um alívio que Cry Macho se ensaie como algo leve e quase melodramático. É tudo sobre a imagem do diretor e como isso se relaciona com um mundo de capital onde até emoção é um bem a se tomar posse, com o cineasta assumindo de novo seu deslocamento do mundo que se avoluma ao redor mas dessa vez disposto a encontrar um refúgio. A fuga não deixa de ser uma forma de vida e o diretor aqui enfim busca esse espaço, o que é tocante se considerar a idade avançada do ator em registro. No mais, foi uma boa sessão para voltar ao cinema e, apesar de estar longe dos relatos de outros no retorno, a narrativa do filme imprimiu toda uma carga emocional nesse momento.

Tá no HBO Max. Gravei Cinemático.

5. Annette, de Leos Carax

Que coisa, Annette foi literalmente meu primeiro contato com o Leos Carax e, apesar de todas as comparações de amigos e colegas com o resto da carreira do diretor, foi uma experiência e tanto. É a crise do artista, mas também uma ópera que leva ao limite os dilemas de paternidade e todo o jogo de vaidade inerente, com o bônus de uma atuação sólida e muito física de Adam Driver como avatar do cineasta. O musical também faz maravilhas, e além do início tanto celebrado acho que vale a exaltação do desfecho ao som de Sympathy for the Abyss. E bebê Annette!

Tá na MUBI e em exibição nos cinemas. Escrevi sobre no trabalho.

4. All Hands on Deck, de Guillaume Brac

Feliz demais de ver All Hands on Deck pipocando nas listas pois como todo mundo descobri o trabalho do Brac esse ano e através deste filme, rohmeriano em essência mas muito particular no próprio conjunto de relações que tece. Até porque sua narrativa não poderia ser mais essencialista, no registro sutil de o que importa mesmo são as pessoas ao nosso redor e a convivência, não o que buscamos ativamente e guia nossas vidas de forma objetiva. A direção é impecável em meio a tudo isso, tanto na condução sem interferências do elenco ao como se registra esses pequenos momentos que enchem a alma.

Tá na MUBI.

3. Roda do Destino, de Ryusuke Hamaguchi

É muito interessante pensar que este ano Hamaguchi lançou dois filmes que expandem de formas muito diferentes tudo que ele trabalhou em Asako I & II - além de ter contribuído com Kurosawa no roteiro de um melodrama que também expande essas noções, mas aí vale voltar pro 15° colocado. Digo isso pra tratar de Roda do Destino pois nesse caso me impressiona que o diretor tenha tecido três histórias que lidam com fantasmas emocionais de formas muito particulares e distintas do trabalho anterior, a noção de encontro e desencontro é amadurecida e reflete de forma física o amargor envolvido em todos os contos - ensaia-se um contato profundo, a história avança e vive-se em torno das possibilidades perdidas. Mais impressionante é que o filme está longe de um sobre luto nessas configurações, e nesse ponto é feliz demais que a produção se encerre na reencenação de encontros fictícios por duas personagens que vivem em função desse arrependimento. O efeito é curativo.

Estreia nos cinemas na primeira semana de 2022.

2. Memoria, de Apichatpong Weerasethakul

O que pode ser dito de Memoria? Eu apenas lamento profundamente que a pandemia no momento impeça que mais gente assista um filme desses no cinema, até porque em termos de transe o Joe segue o mestre maior mesmo. Para além das questões técnicas (o design de som!!) e os temas de relação entre o espaço que habitamos e a própria materialidade de nossa existência, é apenas inacreditável o quanto esse filme funciona na base de cena: a reconstrução do som, o encontro final, o desfecho, a visita ao museu, é tudo muito solto e ao mesmo tempo com propósito definido. De longe a experiência de imersão de 2021, há um sentimento de quase levitação envolvido no ato de assistir um filme desses.

Mas se é pra falar de melhor filme do ano…

1. Drive My Car, de Ryusuke Hamaguchi

2021 foi o ano do Hamaguchi, não tem jeito. Não sou leitor de Murakami e estou vivendo para rever este filme, mas tirando as necessidades imediatas Drive My Car tem uma força quase sobrenatural na hora de lidar com os traumas que nos acompanham, dores fantasmas que ninguém sabe lidar além da convivência diária. E se isso é algo que conversa diretamente com o corpo de trabalho do diretor (de novo, Asako I & II inteiro), também impressiona a multiplicidade de frentes narrativas com a qual se desenvolve o tema a partir do pareamento, da relação entre o artista e a motorista no carro ao embate silencioso com o ator movido a pulsões, passando até mesmo pela jovem surda e obviamente a adaptação de Chekhov e o que se extrai do material no processo para o filme. Grandes cenas que passam num estalo (o prólogo tem 50 minutos, como pode!) e um sentimento crescente de expurgo emocional, capitaneado por uma direção sutil no registro e na encenação de todos os momentos. E lamento ir contra a corrente, mas que Hamaguchi ainda tenha conseguido localizar o filme inteiro no contexto da pandemia só agiganta os efeitos de Drive My Car.

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Feliz 2022!

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Pedro Strazza de Azevedo

Jornalista, repórter da Ilustrada e autor do Aventuras no Cinema. Ex-editor-chefe do B9, já colaborou para Omelete, Tangerina, Sesc e o podcast Cinemático.