Melhores do Ano: 2022

Pedro Strazza de Azevedo
36 min readDec 30, 2022

--

O passado se manifesta

Umas semanas atrás eu saí pra almoçar com dois amigos e, vendo o belo dia que fazia, decidi de última hora por ir ao cinema. Foi uma decisão de impulso que acabou frustrada, porém, quando descobri que não havia um horário ou filme na programação das salas que permitisse a aventura — o que era estranho, considerando que em tese haviam estreias suficientes para se ver.

Poucos dias depois, precisei visitar o shopping mais próximo para fazer umas compras de última hora, e de novo vi na saída uma oportunidade de emendar o programa com uma ida ao cinema. O que não esperava é ver mais uma vez o sentimento acima: no multiplex do lugar havia dois ou três títulos que me interessavam, mas os horários não encaixavam de jeito nenhum. Com exceção do novo Avatar, grande lançamento da semana, as exibições eram todas muito tarde, como se feitas apenas a quem tivesse gasto o dia inteiro visitando lojas e, por ventura, estivesse querendo esticar as pernas em algum lugar.

Escrevo sobre esses dois causos banais nesta introdução não por motivos de indignação — não quero e não vou me perder nos meandros de sempre dos problemas do circuito exibidor e das distribuidoras, os quais admito já estar bastante cansado de lidar — mas porque foi por eles que percebi com clareza a desconexão que cerca a relação brasileira com os filmes. É algo que se expande para caminhos além das salas de cinema, diga-se de passagem, um pensamento que por si só é desesperador por essência.

No atual momento, percebo com certa melancolia o quanto o hábito de se assistir filmes se dissolveu a um ponto de nulidade. Seja em casa ou nos multiplexes, é notável a conversão da prática cultural em consumo puro e simples, erodindo o contato com obras a tal ponto que se encara qualquer sessão como mera distração.

É uma prática equivalente à ida ao supermercado, condizente com nossa realidade de inflação e crise econômica e sem o tormento diário da manutenção da vida. A diferença maior, claro, seria que muito dos produtos nas estantes estão em falta, e nesse ponto acho válido apontar o quanto está defasado a afinidade da distribuição nacional com os rumos e tendências não só globais, como do próprio cinema do país.

O caso mais recente, claro, é o Mato Seco em Chamas de Adirley Queirós e Joana Pimenta, sequer citado, sequer conhecido por terras brasileiras. Mas vamos para além disso: olhando os filmes assistidos e onde os assisti, percebo com tristeza o quanto o meio está desconectado de si mesmo por aqui. Nunca se foi tão pouco ao cinema, mesmo nunca tendo se produzido tanto cinema de qualidade quanto agora.

Mas se esse desencanto com o presente pode ser encarado pela lógica do fim — e me parece que as redes sociais fizeram questão de se alimentar disso nos últimos tempos, vide discussões tolas do naipe de “fim do cinema de adulto” — , por outro lado acho que isso explica em algum nível o porquê da obsessão com o passado ter enfim se cristalizado no imaginário cinematográfico de 2022. Mais interessante: o passado reagiu, como uma fênix que irrompe das chamas de sua própria morte (se é pra ficar na piada eterna com o apocalipse da dita sétima arte), pronto para ser visto e revisto sob todos os ângulos.

E que ano 2022 foi para o cinema.

Talvez essa percepção, como tudo, seja bastante afetada pelo número de perdas que o meio sentiu ao longo do ano, sobretudo quando uma delas é a de Jean-Luc Godard. Mas em algum nível, assistir o filme de memórias se tornar uma recorrência no calendário ou o retorno de um cinema de espetáculo mais tradicional, arcaico até, tem muito a ver com o quanto o nosso desejo pelo que já foi se reconverteu para dentro da produção. Um manifesto do passado, enfim.

Corroborando isso, há também que ser dito que os últimos doze meses foram tudo menos previsíveis, com a exceção talvez do discurso embolorado sobre os Na’vi de James Cameron. Em janeiro, quem poderia imaginar que a sequência de Top Gun seria o maior sucesso de bilheteria do ano? Ou que algo como CODA: No Ritmo do Coração levaria o Oscar de Melhor Filme, bem como Ruben Östlund receberia uma segunda Palma de Ouro? E como assim um épico indiano de três horas furou a bolha?

No lado privado, foi divertido (embora um pouco estressante) acompanhar essa montanha-russa em paralelo às viradas bruscas da vida, sobretudo dado o tamanho do amor que senti ao longo de 2022.

No calor do momento, me atenho de novo ao campo profissional, até porque este foi uma loucura. Escrever para veículos grandes, entrevistar gente vencedora do Pulitzer e colaboradora próxima de cineastas que sou apaixonado, fora sentar alguns minutos com uma estrela de Hollywood… o saldo é muito positivo, e a jornada muito louca.

O que nos leva ao Melhores do Ano. Se desde sempre advoco que as listas do fim de ano igualam de algum jeito nossas próprias experiências, servindo como espelho mesmo quando de olho direto no que consideramos melhor ou pior, a de 2022 para mim vem com um gosto que sintetiza tudo que escrevi até aqui. Enquanto sigo na contradição eterna de sentir que faltou ver coisa e de ter perdido as contas de quantos filmes foram vistos, o resultado final dos trabalhos deste ano refletem uma busca por intimidade com a arte em um momento em que andar meio desligado se figura como norma.

Nesse ponto, devo dizer que fico feliz de ainda ter disposição para essa boa luta.

Enfim, sobre a lista, as coisas este ano se mantém mais ou menos as mesmas, incluindo os critérios — com um pequeno novo detalhe.

Regras

  1. Para estar no ranking basta apenas ser um filme produzido ou lançado (comercialmente ou em festivais) entre 2020 e 2022 que vi no curso dos últimos 12 meses;
  2. São 50 filmes destacados na seção de Melhores, outros 25 no Destaques e mais 15 no Piores, bem como 10 menções de produções voltadas para a televisão (séries, minisséries e antologias).

Se alguém está pensando “Por que você voltou com uma lista de séries numa publicação de filmes?”, acho que tem a ver um pouco com o bom ano, um pouco com o desejo de incluir de novo esses programas que permeiam a rotina de todo mundo. Tudo menos fazer um paralelismo bobo de que TV e cinema estão no mesmo nível, o que me complicaria a fazer listas de tudo (falta tempo pra visitar exposições).

Ainda em novas tradições, a playlist Sons de Cinema ganha uma segunda edição em 2022. É um compilado de trilhas e canções que ouvi durante o ano e depois de ter ouvido em algum filme, independente de estar ou não presente no Melhores do Ano, formatado como uma companhia de leitura a quem decidir gastar tempo lendo todas as seções (obrigado!). Esse ano só tem um porém triste: zero faixas de RRR, dado que a trilha sonora não está no Apple Music.

Como sempre, algumas anotações sobre a lista deste ano:

  • Ano passado cheguei a comentar um certo descontentamento com o número de diretoras no top 50 e, ainda que tenha falhado miseravelmente no #52FilmByWomen, em 2022 a presença de filmes dirigidos por mulheres cresceu. São 11 títulos, com novamente 4 nas 25 posições superiores — fora outros 7 nos Destaques do Ano;
  • Não lembro de um Melhores do Ano com mais animações que este. Ainda que nenhum figure nas dez primeiras colocações, são 5 produções do tipo listadas entre os 50 melhores.
  • Ainda no ineditismo, 2022 marca o ano das repetições. Não apenas há dois diretores “dobrados” no Melhores, como Judd Apatow deve ser detentor do feito inédito de ter um filme no top 50 e outro no Piores do Ano;
  • Como em 2021, a lista tem quatro estágios: os dois primeiros são os favoritos, do terceiro ao décimo quinto colocado estão os filmes que considero ótimos, e entre o 16° e o 35° aparecem listados as produções maneiras. Depois disso, até o 50° lugar estão os filmes que são bons demais para ficar apenas nos Destaques — como gosto de dizer, cinema é um rolê muito subjetivo e os filmes precisam sobretudo de tempo para crescer e amadurecer em nós.

Posto tudo isso, bora pros trabalhos — começando pelo desgraçômetro.

Piores do Ano

Os 15 filmes que mais me deram dor de cabeça em 2022.

1. Jurassic World Domínio, de Colin Trevorrow (Medium, Cinemático)
2. A Bolha, de Judd Apatow
3. Quatro Dias Com Ela, de Rodrigo Garcia
4. Joe Bell, de Reinaldo Marcus Green
5. Animais Fantásticos: Os Segredos de Dumbledore, de David Yates (B9, Cinemático)
6. Veja Como Eles Correm, de Tom George
7. Adão Negro, de Jaume Collet-Serra (Cinemático)
8. Uncharted - Fora do Mapa, de Ruben Fleischer
9. Eike: Tudo ou Nada, de Andradina Azevedo e Dida Andrade (Omelete, entrevista com diretores e elenco)
10. Rosaline, de Karen Maine
11. Moonfall: Ameaça Lunar, de Roland Emmerich
12. Sonic 2, de Jeff Fowler (Folha de São Paulo, Cinemático)
13. Blonde, de Andrew Dominik (Cinemático)
14. Passei por Aqui, de Babak Anvari
15. Persuasão, de Carrie Cracknell

A lista deste ano dói um pouco mais esse ano pela presença de Collet-Serra — e nesse caso nem é possível dizer que foi uma surpresa triste porque desde o começo a sensação era apocalíptica em torno de Adão Negro. Mais interessante, porém, é o equilíbrio comercial entre cinema e streaming, com os filmes de festival reduzidos ao Blonde; como sempre, talvez tenha feito um bom trabalho no campo de evitar as bombas “artísticas”, mas passei mais tempo do que deveria acompanhando os grandes lançamentos espalhafatosos.

2022 também marca o retorno de filmes com cotação 0,5 estrela no Piores do Ano, o que, pelas minhas contas, não acontecia há 4 anos. O pódio da vez foi definido pelo teor de malignidade, dado a afinidade dos projetos: por mais exaustivo que tenha sido a sessão de A Bolha, o “último” Jurassic World sem dúvida é a síntese de tudo que errado que assola esse cinema massificado americano. Entre sátira cínica ruim e blockbuster de puro cinismo, fico com o primeiro.

Séries do Ano

Dez produções da TV que marcaram meu 2022. Os 3 primeiros citados formam um pódio simbólico, enquanto o restante (com exceção do último) segue a ordem alfabética.

  • O Ensaio (primeira temporada), de Nathan Fielder (Cinemático)
  • For All Mankind (terceira temporada), de Ben Nedivi e Matt Wolpert
  • Irma Vep, de Olivier Assayas (Cinemático)
  • A Casa do Dragão (primeira temporada), de Ryan Condal e Miguel Sapochnik (Cinemático)
  • A Cidade É Nossa, de David Simon e George Pelecanos (Cinemático)
  • Lakers: Hora de Vencer (primeira temporada), de Max Borenstein (Cinemático)
  • Only Murders in the Building (segunda temporada), de John Hoffman e Steve Martin
  • Pachinko (primeira temporada), de Soo Hugh (Cinemático)
  • O Senhor dos Anéis: Os Anéis de Poder (primeira temporada), de J.D. Payne e Patrick McKay
  • episódio A Autópsia (de O Gabinete de Curiosidades de Guillermo del Toro), de David Prior (Cinemático)

Sobre esse último nome, confesso que aproveito o caráter de retorno da TV ao listão, mas também gosto dessa ideia de não se prender a temporadas ou minisséries completas para a área. Além disso, o formato de antologia favorece que A Autópsia seja pensado individualmente, ainda que valorize muito O Gabinete de Curiosidades por dar alguma perspectiva a um gênero que anda tão puído.

Destaques do Ano

25 filmes que foram considerados e poderiam estar na lista final, ou simplesmente filmes que chamaram minha atenção, elencados em ordem alfabética.

  • Águas Profundas, de Adrian Lyne (Cinemático)
  • Argentina, 1985, de Santiago Mitre (Cinemático)
  • Assassino Sem Rastro, de Martin Campbell
  • Os Banshees de Inisherin, de Martin McDonagh
  • Boa Sorte, Leo Grande, de Sophie Hyde
  • Decisão de Partir, de Park Chan-wook
  • Dupla Jornada, de J.J. Perry
  • Ela Disse, de Maria Schrader
  • O Exorcismo de Minha Melhor Amiga, de Damon Thomas
  • A Filha Perdida, de Maggie Gyllenhaal
  • Flee: Nenhum Lugar Para Chamar de Lar, de Jonas Poher Rasmussen
  • Glass Onion: Um Mistério Knives Out, de Rian Johnson (Folha de São Paulo)
  • Manto de Jóias, de Natalia López
  • A Esposa de Tchaikovsky, de Kirill Serebrennikov
  • Órfã 2: A Origem, de William Brent Bell (Letterboxd)
  • Operação Cerveja, de Peter Farrelly
  • Passagem, de Lila Neugebauer
  • Pearl, de Ti West
  • O Predador: A Caçada, de Dan Trachtenberg (Cinemático)
  • A Princesa, de Le-Van Kiet
  • Racionais: Das Ruas de São Paulo pro Mundo, de Juliana Vicente
  • Sorria, de Parker Finn
  • O Telefone Preto, de Scott Derrickson (Medium, Cinemático)
  • A Última Floresta, de Luiz Bolognesi (CineSesc | blog Festival Melhores Filmes)
  • Vulcões: A Tragédia de Katia e Maurice Krafft, de Sara Dosa

Mas vamos ao que interessa.

50. A Mulher Rei, de Gina Prince-Bythewood

Gosto muito de Prince-Bythewood desde Nos Bastidores da Fama, mas não esperava que fosse um filme dela a servir de bom antônimo ao que aconteceu com a sequência de Pantera Negra. Ajuda que a história de seu projeto serve de inspiração ao da Marvel, claro, mas é na oposição a sisudez exaustiva do filme de Ryan Coogler pela via do melodrama que noto essa disposição.

Falta em A Mulher Rei uma ação melhor elaborada, é verdade, e até entendo quem reclame que o filme seja problemático em confinar mulheres aos dramas de sempre. Mas negar ao cinema da diretora o que é sua melhor qualidade? Jamais, ainda mais com um elenco desse nível a sua disposição.

Tem pra locação digital. Gravei Cinemático.

49. O Acontecimento, de Audrey Diwan

Feliz coincidência que Annie Ernaux tenha recebido o Nobel um ano depois de um filme baseado em um de seus livros tenha levado o Leão de Ouro, mas se mantendo ao prático eu valorizo demais o quanto a direção de Diwan aproveita o relato a disposição para um drama de sufocamento muito bem observado. Tenho reservas com a reta final, em que se troca a força disso pelo registro do necessário (como sempre com boa razão), mas é em jogadas como a escalação de Sandrine Bonnaire no elenco ou de como se dá o isolamento progressivo e sistêmico da protagonista que O Acontecimento me ganha.

Tá no HBO Max. Gravei Cinemático.

48. The Eternal Daughter, de Joanna Hogg

Com um cinema tão direcionado na proximidade como o autobiográfico, devidamente consolidado pelos dois The Souvenir, me agrada que Hogg tenha se prestado mais uma vez a experimentar os próprios limites com este The Eternal Daughter. O caráter errático, que reforça a sensação de média-metragem tornado em longa, mais contribui que prejudica a narrativa ao meu ver, até porque essa instrumentalização pelas vias do gênero do horror não tem tanto interesse assim pelas convenções de pior espécie. Fora a parceria com Tilda Swinton, que novamente amplifica o que há de melhor na diretora. Um filme de fantasmas tradicional.

47. Até Sexta, Robinson, de Mitra Farahani

Falando em fantasmas (tema recorrente esse ano), fico imaginando o que Farahani pensa de seu Até Sexta, Robinson, que existe claramente em dois momentos: antes e depois da morte de Godard. Se em Berlim o filme já era fantasmagórico ao lidar com o peso de duas figuras mitológicas do século passado, em correspondências que tentam abordar a imensidão dos rumos da humanidade, desde setembro ele parece efetivado como assombração final pela perda do cineasta francês. Sobretudo com um desfecho tão forte; não consigo imaginar uma cena tão arrepiante deste ano quanto a visão de um Godard se despindo da própria imagem, perguntando se é isso e mostrando um breve momento de humanidade. É como ver o espírito saindo do corpo, e isso é só um pedaço do filme.

46. Top Gun: Maverick, de Joseph Kosinski

Sem dúvida o mais popular exercício narcísico de refletir sobre o próprio reflexo, mas quem poderia imaginar que Tom Cruise seria capaz de algo do tipo? Tudo bem que só há glórias envolvidas, mas que o ator se disponha a canalizar isso pelo drama paterno por incumbência é tão impressionante quanto a capacidade de Kosinski em não deixar perder esse fio, centralizando como motor de toda a ação. Top Gun: Maverick está distante das questões maiores que a vida dos últimos Missão: Impossível, mas imagino que é por ser um filme “pequeno” em toda a sua escala que o torne tão atraente ao público. Isso e, claro, o bom trabalho de operário, apoiado nessa convicção de “cinema verdadeiro” que Cruise já tornou em marca registrada.

Posto tudo isso: o que fica pra mim é a cena com Val Kilmer, sobretudo no ato generoso de um Narciso abrindo espaço a outros.

Tá na Globoplay e no Paramount+. Escrevi um comentário maior no Letterboxd e gravei Cinemático.

45. Arremessando Alto, de Jeremiah Zagar

Não estava no meu bingo de 2022 um filme da Happy Madison entrando no Melhores do Ano, mas aqui estamos. A gente fala dos Safdie depois, mas gosto de ver que Adam Sandler parece ter renovado algumas coisa durante a produção de Joias Brutas, sem perder a aura que define seus melhores filmes na produtora que toca — e dando uma mãozinha nesses filmes produzidos pelo LeBron James no processo. Arremessando Alto é tão raiz quanto possível no drama esportivo de superação que toca, mas a direção de Zagar se sobressai em dois pontos muito fortes: a química de Sandler com os atores não profissionais e as inacreditáveis cenas de treino, que passaram um pouco batidas demais nesse fim de ano de rememoração. Em tempo, eu particularmente acho bom ver Robert Duvall na ativa em um momento de tantas perdas de lendas em todos os campos.

Tá na Netflix. Gravei Cinemático.

44. Alcarràs, de Carla Simón

É engraçado, valorizo Alcarràs menos pela crítica do “agro é pop” que tão bem faz que o exercício impressionante de malabares da narrativa. É um trabalho inacreditável o de Carla Simón para balancear tantas histórias de uma mesma família no espaço curto de um longa-metragem, sobretudo quando esse equilíbrio é preciso e a história nunca parece perder o fôlego. O ângulo naturalista chega cansado, mas tomo como base e não um fim. Até porque um filme que literalmente se encerra materializando o apagamento de raízes de sua história merece algum respeito na habilidade de ser pungente sem pesar a mão.

Estreia na MUBI em 2023.

43. A Integridade de Joseph Chambers, de Robert Machoian

Machoian mais uma vez lida com os efeitos de uma masculinidade que mastiga seus protagonistas em culpa, mas enquanto The Killing of Two Lovers me parecia um pouco hermético nessas pretensões, A Integridade de Joseph Chambers já se sai melhor no exercício da coisa. Até porque a dinâmica é unilateral, um longo dia que se arrasta na espiral machona do personagem — nesse ponto é um bônus que Jordana Brewster faça a esposa. Não gosto muito do termo, mas é um bom exemplar de “slow cinema”.

42. Occhiali Neri, de Dario Argento

Amigos e colegas com mais tempo de estrada são melhor capacitados para situar Occhiali Neri na carreira de Argento, mas do meu lado fico feliz em ver um veterano mostrando as garras num campo que domina. Baita giallo seco e que depura como poucos o essencial de sua protagonista.

41. Era Uma Vez um Gênio, de George Miller

Exceção feita ao absoluto inferno que deve ser fazer os Mad Max, muito feliz de ver que George Miller se sente confortável o suficiente para tocar um filme dos sonhos completamente anômalo na produção atual, com a certeza de que não vai tomar qualquer dano por isso. Tenho minhas questões com alguns pormenores do drama de câmara de Era Uma Vez um Gênio, mas as lendas contadas enchem os olhos e a história de amor dos protagonistas se encerra de uma maneira que acho belíssima, no que deve ser o melhor plano de grua de 2022. Nos melhores momentos, lembra um pouco o cinema de Powell e Pressburger.

Tem pra locação digital. Escrevi um comentário maior no Letterboxd e gravei Cinemático.

40. Dashcam, de Rob Savage

Talvez o filme mais insuportável de se assistir dos últimos dois anos com duração de 80 minutos, mas me parece claro que o propósito de Savage era esse mesmo. Como Host, Dashcam é uma montanha-russa de baixo orçamento baseada nas novas tecnologias de comunicação e suas limitações, mas o que me salta aos olhos é esse cruzamento impensável da lógica do found footage com o desktop horror em uma perspectiva completamente dopada de adrenalina. É tudo muito arriscado e a protagonista trumpista vivida por Annie Hardy é a melhor síntese do longa, um ser todo irritante que de alguma forma te envolve no frenesi absurdo.

39. Mad God, de Phil Tippett

Há trinta anos em desenvolvimento e na luta para ser finalizado, o Mad God de Tippett parece mesmo vindo da bad vibes clássica da ressaca dos anos 80 nos 90 — e digo isso como elogio. É uma descida ao inferno movida pelo enlouquecimento, e a animação em stop motion meticulosa reflete com precisão essa espiral.

38. We’re All Going to the World’s Fair, de Jane Schoenbrun

O Crash que separa as gerações Y e Z da internet. É muito difícil refletir a solidão de se estar online e são poucos os filmes que de fato navegam de maneira visceral pelo tema, sem criar algum tipo de distanciamento seguro do tema, então é de se valorizar muito o que Schoenbrun consegue aqui.

Escrevi um comentário maior no Letterboxd.

37. Seguindo Todos os Protocolos, de Fábio Leal

Falando em isolamento, a comédia de Fábio Leal é outro que cumpre um desafio impossível no assunto: registrar a paranoia e degradação gradual de corpo e mente durante a pandemia. Tenho dificuldade sincera em pensar em outro filme que tenha trabalhado também as sensações provenientes dessa solidão de corpos, sobretudo porque Seguindo Todos os Protocolos me parece o único que percebeu o quanto dessa privação está inscrita no desejo. E que de alguma forma se encontre uma ponte para a libertação posterior a esse momento só torna o longa ainda mais bem sucedido.

Tem pra locação digital.

36. Funny Pages, de Owen Kline

É um filme dos Safdie pensado na caricaturização típica dos quadrinhos, o que faz sentido considerando não apenas o tema como que ele é produzido pela Elara. O filme é um pouco bruto demais em sua estrutura, mas acho incrível a coleção de personagens absurdos que Kline reúne aqui, consolidados no “mestre” de Matthew Maher que, além de uma das grandes atuações não reconhecidas do ano, ainda providencia um clímax à altura do ensandecimento proposto. Também dos poucos filmes a reconhecer que a cultura underground dos quadrinhos sempre teve e sempre terá um pouco de babaquice loser envolvida, bem ou mal.

35. Tre Piani, de Nanni Moretti

Família não é o que se tem, mas o que se constrói. Não vi muitos filmes do Moretti pra localizar isso apropriadamente na lógica de seu cinema mas, seis anos depois de algo tão pessoal quanto Mia Madre, Tre Piani tem algo de antônimo ideal mesmo em suas imperfeições. Digo, quem liga pro desfile felliniano quando se tem um reencontro de mãe e filho tão fragilizado pelas circunstâncias do tempo?

34. Tár, de Todd Field

No momento estou fascinado com a contínua recepção séria de parte da crítica com este filme de Todd Field, muito porque me parece uma epítome de seu raciocínio demente e de sua relação com o circuito de arte que tanto satiriza. Imagino que o diretor leve bastante a sério boa parte dos temas tratados, mas Tár funciona muito mais como uma sátira discreta desse estilo elevado de cinema e artes em geral, sobretudo quando sua base é um tratado do narcisismo como jaula em si mesmo. Ajuda muito a cumplicidade de Blanchett, que leva a personagem titular com a atitude serelepe de uma performance dupla, dando voz a seus impulsos grandiloquentes no mesmo nível que se diverte junto de Field do retrato a ser desvendado. Como as redes sociais já bem denotaram, uma das comédias do ano.

Estreia nos cinemas em 26 de janeiro.

33. Minhas Férias com Patrick, de Caroline Vignal

“Just my rifle, pony and me”

Aceitar que você merece melhor às vezes exige que você lide com um burrinho teimoso e muito charmoso, mas o trunfo de Vignal aqui é ensaiar sua comédia romântica às avessas nos conformes de um faroeste. Desfecho lindo, lindo, lindo.

Tá na MUBI e tem pra locação digital.

32. Dead for a Dollar, de Walter Hill

Ainda em faroestes, estava faltando mesmo a contribuição de Walter Hill ao cinema crepuscular dos últimos anos, e me encanta que isso tenha se dado por um filme do gênero que reconhece o quanto, a partir de certo ponto, os conflitos de mocinhos e bandidos deixam de se dar pelos olhos da lei e da conquista de território para se resolverem como grandes acertos de conta. Meio que o equivalente ao ato de pedir a conta na saideira do bar, uma hora alguém vai ter que pagar e você está muito conformado com isso.

31. Batman, de Matt Reeves

Dado o atual cenário atual de pura erosão do gênero, com direito a exemplares que são alguns dos produtos mais cínicos do ano, é bom ver que ainda há possibilidades nos filmes de super-herói, mesmo quando na percepção de retomada de valores que nortearam suas primeiras erupções ali nos anos 80. Isso porque o Batman de Reeves não está lá tão distante assim dos Batman de Tim Burton e de Christopher Nolan no que consta materializar o personagem numa realidade tangível, mas o que se faz a partir daí é distinto o suficiente para valorizar sua existência. O cuidado nos detalhes é essencial, da ação a tecnicalidades de trilha sonora e figurino, mas o que me deixa feliz é essa aproximação do noir, consolidada na separação de amantes que encerra a projeção.

Tá no HBO Max e tem pra locação digital. Escrevi sobre no B9 e gravei Cinemático.

30. Il Buco, de Michelangelo Frammartino

O conhecimento não deixa de ser o fim de um misticismo particular. Aplausos ao Frammartino pro fabricar algumas das imagens mais deliciosas de se olhar este ano.

29. The Souvenir: Part II, de Joanna Hogg

Não estamos falando aqui de Rian Johnson, mas o que acho mais fascinante na segunda parte de The Souvenir é como ele reveste de camadas a história semibiográfica, mas o próprio antecessor — dito isso, assistir os dois filmes juntos de fato deve ser uma experiência e tanto. Hogg promove uma investigação de afetos nos confins da imagem que reflete bem as dores do processo criativo envolvido, e a maneira como o longa trafega por espaços e estéticas é muito bem resolvida pela situação como olhar de um estudante que nasce como profissional iniciante. Sobre fantasmas de imagem e como eles sempre vão nos atormentar.

Tem pra locação digital.

28. A Arte de Ser Adulto, de Judd Apatow

Chegando atrasado, eu sei, mas com certo prazer: ver o filme agora, com o conhecimento das desventuras românticas de Pete Davidson nos últimos dois anos, traz um bônus a toda a experiência de assistir seu eu lírico aprendendo o amadurecimento da pior forma possível. Ajuda muito também o casamento ideal e inesperado desse relato com o cinema largado de Apatow, e nesse ponto fico feliz de ver que seu trabalho de improvisação ainda é capaz de achar novos bons ares depois de ser assimilado e desmantelado pelo mainstream dos últimos 20 anos.

Tá no Star+ e no Telecine.

27. Aftersun, de Charlotte Wells

O filme de memórias não assumido da estreante Charlotte Wells é desses exercícios de estreante que dá gosto de ver, sobretudo na forma como a diretora permite espaço para interpretações em todos os lados e assume para si a alta proximidade pela intermediação da imagem digital. Não bastando isso, ainda há uma atuação sólida de Paul Mescal que traduz tudo que o filme luta para passar sem maior esforço.

Tá nos cinemas e estreia na MUBI em 6 de janeiro. Escrevi sobre pra Folha de São Paulo e gravei Cinemático.

26. Marte Um, de Gabriel Martins

Teríamos perdido a capacidade de sonhar nesses últimos quatro anos? Uma proposta muito difícil a que Gabriel Martins faz em sua estreia solo na direção, mas que é respondida à altura com algo que pode se definir como uma encapsulação do espírito brasileiro — ainda mais por levar em conta a comédia como força motriz dessa narrativa de perturbações. Alinhe com esse clima sempre convidativo dos projetos da Filmes de Plástico e temos uma obra que já serve como capítulo final melódico para esses tempos difíceis do país.

Gravei Cinemático.

25. Noites de Paris, de Mikhaël Hers

Pode soar estranho, mas uma das cenas de Noites de Paris que mais me marcou foi uma próxima do fim, quando vislumbramos a filha da personagem de Charlotte Gainsbourg fumando próximo da janela do apartamento da mãe, numa posição similar a que vimos esta alguns anos antes na história. O filme de Mikhaël Hers me parece construído em torno disso, da atestação de ciclos de renascimento que gradualmente passam dos pais aos filhos, e o fato da premissa cercar um programa de rádio onde estranhos dividem suas histórias ao radialista é o veículo ideal a esta corrente de fins e recomeços que permeiam o bom elenco de personagens. O ato de compartilhar a solidão soa até errado em termos de nexo, mas é o que define o filme com alguma precisão — sobretudo em outro momento belíssimo, quando a mãe dança agarrada aos filhos e sua protegida um hit de Joe Dassin.

Tem pra locação digital.

24. Stars at Noon, de Claire Denis

“Amar até ser engolido” pode ser aplicado aos dois filmes que Denis lançou este ano, mas em Stars at Noon essa afirmação se imprime como lógica da relação por um fio entre os amantes vividos por Margaret Qualley e Joe Alwyn. O filme existe numa dinâmica de atração muito particular, como é típico do cinema da diretora, mas aqui se impõe a destruição como um horizonte ao qual lentamente se aproxima, sem possibilidade de redenção ou mesmo um reconhecimento claro disso. Ou seja, uma definição de paixão jovem que poucos são capazes de obter, de um sentimento entre a autodestruição e a obsessão que nunca parece encontrar um lugar próprio, mas que a partir de certo ponto se torna a única coisa que importa.

23. O Mensageiro do Último Dia, de David Prior

Está mais para uma carta de intenções que qualquer outra coisa, mas a estreia de Prior na ficção me parece condizente com seu histórico de diretor de making ofs, no sentido de realmente reunir e exibir suas influências de uma forma particular e produtiva. Falava de ser engolido em Stars at Noon, e acaba que O Mensageiro do Último Dia é exatamente sobre este ato, pulverizado numa narrativa que vai do procedural ao místico de um jeito que nas melhores horas me lembra o cinema de Kiyoshi Kurosawa. Se isso não é elogio suficiente, eu não sei mais o que escrever.

Tá no Star+.

22. Ambulância - Um Dia de Crime, de Michael Bay

Impressionante mesmo em 2022 é que Michael Bay tenha entregue seu filme de ação hawksiano sobre as transformações de Los Angeles, apenas para ser ignorado. Condizente talvez com a erosão de sua reputação nos últimos anos, mas que não desqualifica Ambulância em sua megalomania, presente desde seu olhar absurdo sobre a geografia da cidade aos planos de drone que de maneira brilhante tornam enfim todo o cinema do diretor em pura cinética. Há quem defina como histeria desmedida de propósito, mas pessoalmente fico feliz de ver que Bay enfim parece ter encontrado um norte, depois de anos se confundindo com a máquina.

Tá no Globoplay e tem pra locação digital. Escrevi sobre no B9.

21. Skinamarink, de Kyle Edward Ball

Acho um pequeno exagero da paixão definir Skinamarink como cinema experimental, mas devo dizer que não lembro de algo que tão bem retratou de maneira legítima o pior dos pesadelos da infância. Ainda mais por saber confinar o horror da narrativa aos espaços que cercam a trama curta das crianças reféns de uma criatura, uma jogada que, ao mesmo tempo que mergulha o filme na abstração, também nota o que de fato configura o olhar infantil: o cerceamento de um mundo infinitesimal, confinado a algumas salas e quartos que só alimentam o pior de nossa imaginação claustrofóbica nessa idade. O clímax onírico pensado por Kyle Edward Ball é a cereja do bolo de um longa muito consciente dos botões a serem apertados.

20. Crimes of the Future, de David Cronenberg

Cronenberg de volta ao body horror? Não exatamente. Crimes of the Future é um filme de intersecções dos mais interessantes, e outro trabalho tardio que tende a autoanálise sem muito esforço — começando pelo tema da performance que permeia a trama. De alguma forma, o diretor retorna o olhar às investigações do corpo para entender o próprio legado construído nos últimos 40 anos, e se não há soluções para as questões que começa a elaborar agora, há de se notar um comprometimento com o tempo presente que rejeita o engessamento do passado e o temor pelo futuro. Em algum nível, Cronenberg se entende como a Joana D’arc de Dreyer que tanto presta conta no desfecho, e essa imagem é a que me intriga mais num filme que se presta a tanta exploração dos novos prazeres da carne.

Tá na MUBI. Escrevi sobre no Medium e gravei Cinemático.

19. Com Amor e Fúria, de Claire Denis

Beleza que Stars at Noon é o filme de romance jovem, mas o fascinante é que no mesmo ano Denis tenha ido para o outro lado da escala e trabalhado numa obra sobre a paixão próxima do fim. Definir Com Amor e Fúria como arriscado me soa como um belo pleonasmo, mas é a partir disso que entendo meu fascínio: do digital gasto que registra as paixões e tensões intensas do casal protagonista aos closes que cercam o ótimo trabalho de Vincent Lindon e Juliette Binoche, tudo aponta para um longa que se presta a entender o desgaste do tempo sem desmerecer a potência de relações íntimas de anos, e esse puxa e repuxa estica uma corda e tanto. Denis nos bota o mais próximo possível de uma paixão para que atestemos a sua existência e, de alguma forma, isso ainda não é o suficiente para manter as coisas como estão.

18. Confess, Fletch, de Greg Mottola

Os tempos são de whodunit no mainstream norte-americano, mas que agradável surpresa ver uma comédia de estúdio se sair tão bem no abraço caloroso do noir. É algo tão bom quanto ver Jon Hamm ser enfim muito bem usado para a comédia, um trunfo e tanto do filme de Mottola enquanto desenrola uma narrativa fluida no humor de situação e cheio de detalhes. Na atual conjuntura há quem diga que é pouco para uma produção assim, mas ao meu ver falta projetos assim na produção americana de hoje.

17. One Fine Morning, de Mia Hansen-Løve

Assistir One Fine Morning no mesmo dia de Aftersun foi para mim uma experiência brutal. Se o filme de Charlotte Wells lida com as revisões do passado pelo presente, o de Hansen-Løve é frontal na dura constatação de um presente que se torna passado, tendo a morte não como foice repentina, mas um urubu que circunda gradativamente mais próximo de um mundo particular. Atestar o fim e todas as mudanças que promove é o centro nervoso de One Fine Morning, afinal, e por ele acompanhamos toda a jornada que a protagonista de Léa Seydoux (de novo em grande atuação) é submetida enquanto lida com os primeiros sinais de deterioração do pai. Que transformação esteja no centro do cinema de Hansen-Løve não é novidade, mas a melancolia maior se imprime com firmeza e dá ares de ineditismo a um cinema já sólido.

16. Apollo 10 e Meio: Aventura na Era Espacial, de Richard Linklater

Nostalgia é um sentimento gostoso, mas esconde perturbações de um passado que faz bem em não retornar. Cronista de mão cheia, Linklater retorna a animação em rotoscopia com o propósito claro de desvendar a infância que lhe enche a alma ao mesmo tempo que a atormenta, e nesse meio do caminho o relato de Apollo 10 e Meio ganha força. Até porque, entre outras coisas, ele privilegia uma visão ingênua de criança sem desmerecer sua doçura, cabendo ao espectador fazer o melhor julgamento de uma época a partir de algo que a princípio não poderia ser mais saudoso. Pormenores do discurso, eles estão sempre ali prontos para revelar mais do que deveriam.

Tá na Netflix.

15. Pinóquio por Guillermo del Toro, de Guillermo del Toro e Mark Gustafson

Demorou, mas Guillermo del Toro enfim achou uma forma de unir os dois motores de seu cinema — o horror e a paixão. Sua versão de Pinóquio não poderia ser mais descolada dos propósitos do conto de fadas, mas encontra uma maneira bela de materializar a ideia até então só verbalizada de carregar no coração aqueles que amamos. No meio do caminho, dá tempo ainda de fazer uma crítica nada sutil ao fascismo como um caminho de amor renegado, e nesse ponto é preciso ser dito que del Toro e Gustafson se saem muito bem incorporando uma espécie de espírito de Jim Henson, seja na animação ou nos propósitos.

Tá na Netflix.

14. Belle, de Mamoru Hosoda

Um conto de fadas para a geração Z, um olhar preciso de nossa tendência à extrema individualização na internet ou um musical coming of age? Belle é tudo isso e muito mais, e nesse excesso mora a beleza da estupenda animação de Mamoru Hosoda. Entendo quem reclame do inchaço, mas ao mesmo tempo é essa extensão que dá ao filme seus melhores momentos, sobretudo porque eles não são picotados para caber ao escopo, mas servem ao mesmo em toda a sua intensidade.

Tá na Netflix e tem pra locação digital.

13. Mães Paralelas, de Pedro Almodóvar

Como Croneneberg, Almodóvar é outro que parece inaugurar um novo ciclo na carreira pela lógica mesclada de interiorização e exteriorização. Mães Paralelas é mais um melodrama do diretor que entende quais caminhos seguir na lógica emocional, mas sua posição dentro do legado histórico a ser exumado potencializa tudo dentro do gênero. Ter e perder algo querido em mãos sem saber seu destino é dos traumas mais dolorosos, afinal, e o diretor é esperto de construir uma ponte que reúna o drama com a história de seu país.

Tá na Netflix. Escrevi sobre no B9 e gravei Cinemático.

12. Limbo, de Soi Cheang

O acúmulo dos restos do capitalismo que pavimenta o noir. Para um filme basicamente pautado no lixo, Soi Cheang é sagaz demais em 1) filmar a sordidez com um dos preto e branco digitais mais belos dos últimos anos e 2) encontrar um drama de trauma represado que dê vazão a todas as dores.

11. Red: Crescer É uma Fera, de Domee Shi

O Livrando a Cara da Pixar, o que é muito bonito se considerar que Domee Shi, distante da geração fundadora do estúdio, soube como poucos a encontrar lugar aos dramas de reencontro emocional dando vazão a perspectivas geracionais.

Tá no Disney+. Escrevi sobre pra Folha de São Paulo e gravei Cinemático.

10. Os Fabelmans, de Steven Spielberg

Depois de todos esses anos prestando contas com mestres, Spielberg enfim se dedica a olhar para o próprio passado. De todos os filmes de memória aqui listados, Os Fabelmans é o que mais se iguala a um álbum de família, mas de forma inacreditável isso se revela algo positivo e não que atravanca a narrativa. Como em Jogador N°1, o diretor não se resguarda da posição de nome maior de uma indústria ao olhar a si mesmo, mas sua posição é menos narcísica do que aparenta e está de fato interessada em mistérios que sabe não haver solução — o pai, a mãe, o tio, aquele bully que de repente se revela um herói em seu olhar. Então o filme é sobre Spielberg, mas tudo ao redor é a grande atração, e que atrações são: descobrir o jogo de imagens, entre possibilidades e tormentos, se manifesta aqui de maneira visceral, em uma percepção de passado que volta a se manifestar como mitológico. Print the legend, incluindo colocar David Lynch para ser John Ford no fan service do ano.

Estreia nos cinemas em 12 de janeiro.

9. Adeus, Capitão, de Vincent Carelli e Tatiana Soares de Almeida

Adeus, Capitão na verdade encerra uma trilogia de história e perdas para Vincent Carelli — com Martírio sendo a obra prima inquestionável do grupo— mas, como Farahani, me parece adequadamente reinterpretado agora que acontece no mesmo ano que finaliza o período de Jair Bolsonaro na presidência. Não que há uma questão partidária envolvida (de novo, Martírio brilhava por não perdoar ninguém), mas porque o relato extremamente pessoal do antropólogo e indigenista se confunde aqui com uma derrocada geral da cultura indígena frente anos de exploração e ocupação pelo capitalismo. Nesse sentido, o fato de Adeus, Capitão ser um filme sobre aculturação encontra um estado de espírito quebrado da identidade nacional. Nada resta dessa cultura, lamenta Carelli, consciente da posição de alguém que, como o falecido líder e amigo retratado, tentou de tudo para evitar esse desfecho.

Escrevi sobre pra Folha de São Paulo.

8. The Fire Within: A Requiem for Katia and Maurice Krafft, de Werner Herzog

Por mais que concorde com quem veja com desprezo o Vulcões frente à magnitude de The Fire Within, admito que acho uma feliz coincidência que ambos os filmes tenham saído este ano, porque o documentário de Sara Dosa só alimenta os contornos do de Herzog. Saber mais da história dos Krafft, afinal, não é o foco de The Fire Within, mas saber um pouquinho da trajetória do casal dá mais gás à longa investigação do diretor sobre aquelas imagens de imenso fascínio, vindas do interior da Terra. É um filme de cineasta para cineasta sobre cineasta, mas aberto a quem quiser para entender o que de fato guia um olhar na construção de cinema e o que está em jogo em cada plano almejado e conquistado. Quem somos nós perante as imagens que capturamos?

7. Avatar: O Caminho da Água, de James Cameron

Nunca aposte contra James Cameron.

Brincadeiras à parte, me encanta profundamente o quanto este novo Avatar avança em um caminho próprio, quase que na mesma medida com a qual me desinteresso pelo debate do filme no calor do momento — o que talvez o torne no Matrix Resurrections de 2022, neste sentido. O balé tecnológico comove, é claro, mas não tanto quanto o aprofundamento das simbioses entre indivíduo e natureza da sequência, sobretudo na lógica da aventura familiar tradicional que é tudo menos conservadora. Como pais e filhos, os dramas e traumas se repetem, mas de maneira diferente, com limites cada vez menos perceptíveis. E aquelas baleias! Independente do sucesso financeiro, um filme cuja força ainda está para ser compreendida.

Tá nos cinemas. Gravei Cinemático.

6. O Filme da Escritora, de Hong Sang-soo

Por incrível que pareça, a lembrança mais tenra que tenho de O Filme da Escritora foi de quando o filme acabou e uma senhora do meu lado esbravejou para mim sobre o absurdo que era o longa ter sido premiado com roteiro no Festival de Berlim, dado que “não tinha história”.

Talvez ela tivesse razão, mas há muita beleza no fato de Hong criar um filme que termine em si mesmo, despido de uma razão maior de existir além de uma investigação muito profunda do porque se faz cinema. É o maior elogio da arte que pode se fazer, mas também das pequenas relações que tornam a vida mais bela — e é claro que Kim Min-hee está no centro de tudo novamente.

5. RRR: Revolta, Rebelião, Revolução, de S.S. Rajamouli

O top 10 do Melhores do Ano de 2022 claramente é dominado por filmes fadados ao espetáculo e o passado, então faz todo sentido que o quinto lugar vá para uma espetáculo maximalista e calcado numa história nacionalista de Rajamouli. RRR foi um filme que veio para reduzir a cinzas muitas das noções de grandes produções hollywoodianas este ano e, para além da discussão de valores, é lindo perceber o quanto isso está calcado no show e na performance, elevando seus atores titulares ao posto de deuses na Terra e munindo de sentido uma luta contra o colonizador que não poderia ser menos que épica. A quantidade de sequências brilhantes é inexplicável mesmo para um filme de três horas, e que tudo se enlance em valores fraternos e familiares só torna o pacote mais vistoso.

Tá na Netflix. Gravei Cinemático.

4. Red Rocket, de Sean Baker

Serão provavelmente poucas as obras dedicadas a explorar o trumpismo que vão ficar pra História, dado a gravidade e inerente curiosidade por um tema tão maligno do mundo contemporâneo. Mas se há um filme que conseguiu trazer à tona o sentimento de sedução inerente aos mecanismos desta ideologia nacionalista corrompida, tão copiada ao redor do globo, é o Red Rocket de Sean Baker — o que faz sentido, dado os interesses demonstrados por ele até o momento. Não bastando o trabalho fortíssimo de Simon Rex e de Bree Elrold, o filme entende como poucos o quanto a lógica desse mundo está na criação de um desejo mesquinho e fadado ao orgulho, que mal se disfarça em atos parvos de humildade e sempre se agarra ao poder onde lhe é possível. O Bye Bye Bye tocado tantas vezes não apenas é um adeus a esse olhar corruptivo, como uma síntese da superficialidade de intenções que domina essa lógica.

Tem pra locação digital. Escrevi um comentário maior no Letterboxd.

3. Não! Não Olhe!, de Jordan Peele

Confesso que vejo com surpresa e admiração a medalha de bronze deste ano. Menos porque o filme de fato une todas as tendências da lista deste ano de forma admirável, mas também porque mostra que, aos meus olhos, Peele se efetivou de vez no cinema autoral que já se localiza desde Corra! e Nós. Não! Não Olhe! é eficiente tanto como um blockbuster no esquema de produção de boutique dos estúdios quando na investigação de passado que se mostra cada vez mais o norte maior do cinema de seu diretor, ainda mais por ter a obsessão com a imagem de núcleo. E que Peele assuma influências de Spielberg e Shyamalan para conceber suas próprias histórias… bem, é nesse ponto que sinto que uma chave virou no imenso quadro do destino.

Tem pra locação digital. Escrevi um comentário maior no Letterboxd e gravei Cinemático.

2. Licorice Pizza, de Paul Thomas Anderson

“Eu quero você inteiro pra mim”
“Bom, não é assim que o mundo funciona”

Dois filmes de memória encabeçam a lista deste ano, mas o mais interessante é que eles parecem servir de lados de uma mesma moeda. Sobretudo por partirem de uma mesma constatação sobre o passado: a malignidade incrustrada em atos vistos a princípio como ingênuos.

Licorice Pizza processa isso pela fuga. Nunca se correu tanto num filme de Paul Thomas Anderson como este, afinal, e para além da demonstração de juventude ela ilustra com precisão o quanto a comédia que cerca o romance está prevista num drama com o próprio lugar de origem. Gary e Alana vivem a seu modo a vida no vale de San Fernando, se aproximando justamente pela recusa em aceitar as condições impostas por aquele espaço, mas é na luta dela que temos a percepção gradual da prisão que se pinta.

Mas Anderson segue sendo um otimista a seu modo, e daí surge a linda conclusão que fecha o filme de uma forma tão emocional. Em um filme de fantasmas, encontrar o amor é tudo que se precisa para encontrar sentido.

Tá no Prime Video e tem pra locação digital. Escrevi sobre no B9 e gravei Cinemático.

Mas como melhor filme do ano só tem um…

1. Armageddon Time, de James Gray

Eu ainda tenho dificuldades em entender a visceralidade com a qual desfrutei da experiência deste filme.

Para além da indignação besta que deve me tomar nos próximos anos lembrando que ele foi completamente descartado de todos os lados, incluindo fãs ardorosos do diretor, Armageddon Time me pega de surpresa por processar essa questão do passado como assombração real e personificada no privado. Talvez derive daí sua forte conexão com o Amantes, muito além de ser outra história sobre a relação de James Gray com os pais (em especial a mãe): enquanto se dedica de maneira tamanha à reconstrução, o diretor também se indaga sobre sua relação com aqueles espaços que deixaram de existir. Aqui, porém, não há espaço para ternura, mas um desencanto de mundo progressivo.

Eu já cheguei a verbalizar anteriormente que o longa é dos grandes trabalhos sobre o fim da infância, e é por este ângulo que entendo a força da constatação do filme sobre o mundo desigual que cerca Paul. O teor reduzido da direção de Gray amplifica estes atos por entender que não é uma percepção individual, mas parte de um processo que acompanha as dores naturais da passagem do tempo. Quando vemos o fantasma do avô no quarto do garoto, na reta final, sua vinda não é um aconchego, mas um lembrete da realidade que se manifesta para derrubar um presente tornado em passado.

E não bastando tudo isso, ainda vi parte de mim refletida naqueles corredores frios do colégio de elite, um ambiente inóspito que parece permitir que nada de bom cresça. Em outras palavras, a ótica correta para se entender a crueldade inscrita no privilégio.

Gravei Cinemático.

Outras edições

Feliz 2023!

--

--

Pedro Strazza de Azevedo

Jornalista, repórter da Ilustrada e autor do Aventuras no Cinema. Ex-editor-chefe do B9, já colaborou para Omelete, Tangerina, Sesc e o podcast Cinemático.